quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Quase vegana

 


        Passei apenas seis meses seguidos sem comer carne. Quando falo a respeito de carne, é claro, falo de fragmentos de bichos, principalmente dos conhecidos boi, frango, porco e peixe. Essa minha saga ocorreu com um propósito: facilitar algumas posturas de ioga. E funcionou. O corpo, ao ficar mais leve, desenvolveu os movimentos com mais rapidez ou mais eficiência. Mas, o tempo de dedicação foi curto. Perdi a batalha, por enquanto.

        Não fui mais adiante porque me rendi a um ensopado saboroso de rabada com agrião. Gente, não resisti mesmo àqueles pedaços de cartilagem, com aquele caldo cheirando a pimenta, cebola, alho, coentro ou salsa. Aquilo, colorido e brilhante, que uma vez serviu para compor o final de um esqueleto, de pronto me servia, em porções generosas. Parecia sussurrar assim: eu avisei.

        Sim, continuei com a prática da ioga, que não foi mais a mesma. Passei a intercalar dias sem carne, comendo ovo ou queijo. Palmito também, como nobre opção. Mas, num breve período, fui vencida. Logo se vê que não posso dizer que sou tão evoluída no campo espiritual. Há o pecado da gula que me cerca, dias e noites. Luto contra ele, como numa partida de boxe. Caso eu esteja de frente a um bife acebolado, é nocaute: com certeza.

        Dizem que há tipos de pessoas que não comem carne. Que comem somente peixe. Ora, pois. Somente peixe. Eu mesma já me empanturrei com moquecas, as mais variadas, com aquele pirão acompanhando as postas. Dependendo do bicho aquático, é carne sim, da boa, e com gordura, por baixo do couro. Percebi, depois de muitas investidas de boca cheia, que meu estômago não reage bem a esses encourados. Não significa dizer que eu esteja livre.  

        Outros seres da água, mesmo não muito convidativos ao meu paladar, também estão aptos ao meu octógono, à luta clássica dentro de mim. Não sei se me pegam no primeiro ataque. Aquela pergunta aparece, com ares literários: pensar ou não pensar; comer ou não comer; ser ou não ser. Mas ninguém faça cerimônia se quiser me apresentar uma panela com camarão, polvo, sururu, caranguejo ou siri. Devoro tudo, em rocambolescos minutos.

        Com a gula, há um médio controle, mas que soa como um sino que me atormenta. Quando eu me encontro com a costela bovina com batata, presto minha inteira solidariedade a quem a preparou. Tento ficar somente na batata, mas, realmente, não posso. Ainda me perco nas trilhas. Se possível, vou à cozinha do lugar e dou os parabéns aos responsáveis.

        Quando o assunto é ave, não somente frango, pato, galo e galinha me chamam a atenção. Lembro que, algumas vezes, comi arribaçã frita. Outros passarinhos, coitados, já caíram na minha teia. Admito que nem lembro de quem cometeu o crime da matança, e se o ato foi com baladeira ou arapuca. Quero nem saber.

        E quando o tema é suíno, olha, até tento me segurar, mas um churrasco de linguiça é de salivar. Aquelas bolinhas gordurentas me inspiram, mas parece que me vigiam, dizendo: Cristina, você não é mais criança. Vá devagar. Aliás, toda carne que enfrenta a brasa guarda uma riqueza diferente. O cheiro convida.

        Outra produção que nasceu dos porcos: a calabresa. Na pizza, é de arrepiar. Pode ser no pão. Pode ser no cuscuz. Pode ser no arroz. Pode ser com bolacha. Difícil é me segurar ou adotar a consciência de analisar os riscos sobre uma vida que foi tirada. Quando a mente vem se aproximando dessa ideia, de imediato, crio a expressão em letras gigantes, em neon: cadeia alimentar. Cadeia alimentar. Cadeia alimentar. Nem ouço mugido, berro, piado, grunhido, cacarejo. Penso na minha limitação em não obedecer aos ritos meditativos. Penso no presunto. Penso no paio. Penso na mortadela. Penso no salame.

      Outras lascas porquinhas são irresistíveis junto com o feijão. O que seria da feijoada sem essas criaturas, que meus amigos veganos chamam de cadáveres, não sei. Experimentei, entretanto, essa iguaria típica do nosso Brasil, de diversas maneiras: com proteína de soja, champinhom, grão-de-bico. Não colou. Se alguém me convidar, lógico, comerei. Mas o prazer vem mesmo é daquele carré, daquele pé ou daquele bucho. O toucinho é algo que enfeita o momento, coloca um ritmo guloso na dança. Às vezes, vem para estralar mesmo, fazer barulho na cabeça.

        Quando penso na família dos saltitantes caprinos, a gula triplica. Que bela festa. Cozido, assado, frito, costurado: bode, cabra, carneiro. Saia da frente, por favor. Nem cabrito escapa. Querido leitor, veja a minha dificuldade em ser vegana ou vegetariana. Peço desculpas pela decepção. Caso queiramos nos remeter aos miúdos, sem problema: fígado, coração, rim, moela. A brincadeira está valendo. A miudeza, o detalhe ou o pormenor sempre serão intensos objetos de estudo. Com louvor.   




Imagem: Vecteezy


terça-feira, 10 de novembro de 2020

Verdade verdadeira






 








        É, comadre, como eu ia dizendo, a verdade é verdadeira. Disse que ontem ouviram um vulto. E como se escuta vulto, não sei. Mas sei que se pode ver. Um compadre da vizinha disse que podia escutar, de tão estrondosa que era a clareza da luz. Pois, então. É isso mesmo. Disse que lá longe, por trás do sítio Esperança, indo mais para o lado do sítio Concórdia, eles avistam tudo o que é de vulto. E que tem toda semana. E é verdade verdadeira. Pois é.

        Não é querendo dizer que acredito em tudo, mas outra comadre minha, a senhora se lembra, aquela que foi para São Paulo, pois é, filha dos meus primos por parte de pai, disse que ela via. Disse que era. Sim. Disse que era. E era verdade limpinha, verdade verdadeira. Como o dia vem depois da noite, como aquele juazeiro não seca de jeito nenhum.

      Comadre, esse negócio de assombração é fato, o povo garante. Disse que é realidade, da boa. Verdade verdadeira. Não se assuste. Nem é para se assombrar. Nem era para ter esse sentido. Escute. Um conhecido meu, que trabalhava de entregador de leite, lá nas bandas do rio Verde, achou de se admirar com uma visagem. Não entendi. Ora, se ele viu, não sei por que se assustou. Disse que ele até desmaiou, comadre, de tão forte que era a visagem. Disse que era uma coisa enorme, que tomava mais de vinte metros de altura. Sufocava as vistas de tão brilhosa que era a situação. Daí que meu conhecido veio a ficar sem chão. Quem o socorreu, não sei. É possível que ele tenha se levantado sozinho porque naquele meio do mato não passa gente de hora em hora. É difícil. E era no amanhecer, no início, na boca do vento, com os primeiros raios de Sol, com os primeiros passarinhos cantarolando.

        Mas está aí ele para contar. Ele conta em tudo o que é estrada, boteco, pouso. Vai contando e destrinchando como foi. Eu mesma, comadre, não sei se acredito. Mas disse que é verdade verdadeira. Coisa da mais pura realidade. Coisa fina. Coisa que só quem vê é quem sabe contar direito. Quem não viu, assim como eu, fica fantasiando, desenhando na cabeça.

        Torço até para um dia me encontrar com uma imagem, uma cena desse tipo, uma inquietação próxima a que chegou na vista do meu conhecido. Pelo menos de cor parecida. Pelo menos para procurar, de mansinho, entender o que ele conta. Sim. Pois é isso.

        Aquele meu outro conhecido, parente daquele moço, Seu João, que vendia rifa, sim, aquele, jura de mão junta que, numa noite de inverno, viu. Disse que outro conhecido, que atende pelo apelido de Zinho, nunca mais foi a mesma pessoa. Como pode, podendo. Pode sim. Disse que ele viu e gritou de susto, comadre. Nem imagino como é esse susto porque penso que é uma luz que contenha certa beleza. Não vejo por que se espantar, como quem vê uma monstruosidade. Pois é. Disse que ele passou quinze dias sem dar uma palavra. Só fazia beber água, comadre. Pense numa novela.

        Mas, olha, aqui entre nós, eu acredito, de algum jeito. Sei que dizem que é verdade. Firme como uma rocha. Verdade, verdade, da mais profunda afirmação da história. E ele é um rapaz trabalhador. Não ia sair por aí mentindo, contando lorota com uma visagem. Fique sabendo, comadre, que eu, se me deparar com uma luminosidade que pode até tirar minha fala por alguns dias, não vou contar. Não conto a seu ninguém. Por quê? Ora, nem toda verdade verdadeira é assim, contada. Pode ser silenciada. Tem segredo que é a prova mais viva de uma coisa e que nem por isso é revelado. Guarda no seu íntimo, comadre, o caroço da verdade.

        E, como eu ia dizendo, esse assunto de visão fora do tempo, visão de repente, tem algum fundo de exagero. Sei lá se aquele meu conhecido viu coisa tão alta. Sei lá se foram tantos metros. Pode ser que ele mesmo tenha se enganado. Não estou dizendo, com isso, que o rapaz mentiu. Não. Quem sou eu. Mas o rapaz, no susto, pode ter aumentado a forma, pode ter caprichado na intensidade, pode ter carregado na ideia da ilusão. Pois é. Mas se eu disser isso a outra pessoa, diferente da senhora, comadre, que é da minha confiança, é sujeito eu ser interpretada com outro olhar.

      Disse que Donana, aquela minha conhecida lá do Pajeú, embarcou numa conversa assim, colocando algumas passadas na estrada do contador. Não deu certo. Foi moído para mais de ano. Inventaram que ela mentia e dizia, além disso, que o acontecimento nunca havia existido. Sinceramente. Isso mesmo. É melhor, acho, sentir a verdade com todo o seu universo. Sim. Porque é isso, comadre. A verdade, quando domina, é a verdade verdadeira.   


A montanha

 










        Uma das posturas mais ensinadas na ioga, para quem está começando, é a da montanha. Segundo a origem da prática, escrita em sânscrito, chama-se Tadasana. A pronúncia mais difundida é a tônica na antepenúltima sílaba, tomando como base nossa leitura aportuguesada: Tadássana. Para os mais ortodoxos, Yoga deve ser escrito assim, iniciando com ípsilon maiúsculo, com pronúncia fechada na segunda letra. E seria uma palavra masculina. Mas, as adaptações no nosso canteiro fazem da ioga um nome feminino, com pronúncia aberta. Não depende de letra maiúscula para se mostrar importante.

        A postura citada, que se coloca simples para quem inicia, trata apenas de ficar de pé. Apenas. Uma das versões é deixar os braços estendidos ao longo do corpo e olhar para a frente. Não é tão fácil passar alguns minutos sem se render à ansiedade ou aos barulhos internos e externos. Com o decorrer das atividades, percebemos que a respiração será a principal fonte da concentração, para que os pés se sintam firmes, a coluna esteja alinhada e o pensamento flua como um rio em tempo de primavera.

        Pensamento. Pensamento. Está aqui um discreto contrariador da ioga. Se não for bem articulado, torna a postura sofrida e o praticante irritadiço. Eu mesma já fui vítima do pensamento atravessado, desconsiderei o ritual e vi colegas desestabilizados com o tamanho do corpo. Na realidade, é o tamanho das próprias limitações, das desconfianças, das dúvidas, das intolerâncias, das bombas de açúcar no sangue, dos pratos deliciosos de costela ensopada. Tem gente que desiste logo na montanha.

       Ao imaginar a elevação, penso numa excursão diária, num grupo de desportistas, cujo líder recomenda cautela. Vamos escalar com cuidado, diria ele. Vamos, ao menos, contemplar. Ao menos sentir uma porção da natureza, disponibilizada para nós mesmos. Ao menos, sentir. Ao menos, pois a montanha traz uma série de simbologias. Se o corpo estiver ereto, firme, seguro no exercício, pensar significa não pensar. Sim. Significa não elaborar, não se preocupar com o que a mente apresenta e deixar o ato de respirar sintonizado com o ambiente.

          A montanha ganhou tal nome na ioga porque indica justamente o estado de firmeza, de equilíbrio, de exatidão. No nosso lado ocidental, pensamos parecido. Não é à toa que está incorporada, na nossa fala, a certeza de que a fé remove montanhas. Não é à toa que existe aquela música, que fala da montanha, que nos lembra o ato de agradecer. E o agradecimento é límpido quando compreendemos seu verdadeiro sentido. A montanha será sempre aquele lugar alto, representativo da beleza e da imponência. Nos meus desenhos de criança, a paisagem, para ser completa, tinha uma montanha. Um risco no fundo da composição, combinado com outros traços, com retoques de cores e algumas plantas. Para ficar ainda mais emocionante, percebi, no meu mundo, que da montanha poderia surgir uma cadeia, uma cordilheira, um conglomerado de montes, figuras naturais em pedras a serem escaladas.

        É por tudo isso que a postura da montanha é como se fosse a postura da verdade. A partir dela, percebemos como está nossa quietude, ou seja, nossa capacidade de parar, mesmo com tanto alarme tocando. Essa pausa é intencional e se torna complexa, à primeira vista. Quando lembro de montanha, também lembro de uma dificuldade que pode ser vencida. Lembro de uma suntuosidade geográfica. Um destaque. Um ser que é vivo, alto e bem alto. Com finalidades múltiplas. Finalidades que se auxiliam. Finalidades que nos convidam. Sim, vamos lá.  

  



Imagem: Freepik

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    A hipnose era certa. A Parada das Miudezas, no meu regimento, seria sempre uma visita obrigatória. Para uma criança de cinco anos de ida...