sexta-feira, 8 de maio de 2020

Lições eternizadas






A sorte me chegou diversas vezes e sou grata por isso. Um dos exemplos que lembrei, dia desses, foi ter sido aluna de Wellington Pereira, na UFPB. A disciplina foi Preparação e Revisão de Originais, em 1994. Wellington estava quase embarcando para a França, com o objetivo de cursar o seu merecido doutorado em Sociologia. Um dos primeiros ensaios que escrevi para a disciplina, O sabor da crônica, além de documentado pela instituição, está por mim guardado. Foi ensaio porque se colocava diferente de todo e qualquer trabalho acadêmico que eu fazia: um tom dissertativo, mas sem tantas amarras. O professor nos ensinou a lidar com certa liberdade, aos construirmos uma crônica, um artigo de opinião, uma crítica, e até mesmo numa grande reportagem, que nunca deixa de apresentar o tom pessoal de quem escreve. Vejamos bem: certa liberdade, não total. Eis a fórmula ética do bom produtor de textos.

A característica metalinguística da disciplina dizia tudo sobre o professor. Na época, ele me presenteou com As possibilidades do Róseo, seu livro de contos. Poeta em tudo o que procurava dizer, ele foi fundamental para deixar clara a importância da técnica na escrita. Lembro da sua voz pastosa e risonha, dizendo sempre: talento sem técnica não adianta. Leia, dizia ele, para nós todos: leia e muito, muito mesmo. Esse muito, claro, com critérios estabelecidos pelo próprio leitor. Leia os clássicos, os escritores consagrados, os escritores premiados. Se o escritor foi premiado, por mais que o leitor não goste do estilo em questão, é importante ler e procurar compreender por que o prêmio. Caso o leitor não se conforme com apenas uma narrativa daquele autor, é salutar conhecer outros títulos.

Leia os best-sellers, pare de preconceito com os best-sellers, deixe o autor ganhar dinheiro em paz. A perenidade da obra, o tempo se encarrega de dizer e provar. Escreva. Escreva todos os dias: uma frase, um verso, uma estrofe, um parágrafo. Transforme a pressão cotidiana, os famosos prazos, em aliados: aproveite para aprimorar ou adaptar sua técnica. Por mais talentoso que você acha que seja ou que os outros dizem, invista na técnica. Seja o artesão que não se contenta, dia e noite, enquanto não admitir que seu texto está pronto para o editor. Leia a gramática, estude a gramática. Faça da gramática uma companheira de todas as horas, junto com o amigo dicionário.

E, assim, fui entendendo, aos poucos, os conselhos do bom mestre, com assento carimbado na literatura. Graças a essas aulas, decidi rápido o que seria meu Trabalho de Conclusão de Curso, em 1998: A tecla do tempo. Fiz um ensaio sobre a fusão do jornalismo e da literatura no gênero crônica. Não o considero maduro para ser publicado, mas pode crescer para outro ensaio, mais elaborado e recheado de novas ideias. O orientador do trabalho foi o professor Carmélio Reynaldo Ferreira, outro que me ensinou muito sobre o ato de escrever tecnicamente.

Durante a fase da pesquisa, tive a honra de entrevistar dois grandes cronistas que já se foram, para outra dimensão das palavras: Luiz Augusto Crispim e F. Pereira Nóbrega, o mesmo que tinha sido o Padre Chico Pereira, nas bandas do meu doce Vale do Piancó.  Cada um com sua lição prodigiosa em escrever. Todas as lições estão catalogadas no mesmo reino das subjetividades, o mesmo onde estão os sonhos, aqueles que, de vez em quando, relato aqui. A diferença é que beiram a realidade, quando encontram novas caras e letras. Mas isso já virou tema de outra conversa. Boa sorte.         









sexta-feira, 1 de maio de 2020

Trinta moedas de prata







Certas músicas aprontaram muitas na minha memória. Vivi nos acordes um realinhamento de ideias, uma carrumbamba de emoções com açúcar. Asa Branca está no tope dez das catarses. A primeira nota sinalizada na sanfona promove, de imediato, um olhar mais penetrante. O espetáculo está apenas começando, não somente para falar do fenômeno da seca. Fala da existência do ser humano, o qual, por ser humano mesmo, pergunta-se de forma diária e cansativa como ser gente. Nem todo humano é caracterizado por mim como gente. Tenho certeza de que muitos dos leitores entendem de outra forma: que todo ser humano é gente. Isso é saudável. Cabem as interpretações mais diversas.

A canção Asa Branca não cansa de ser interpretada. Isso acontece porque muitos seres humanos e gentes gostam de estudar. Há muito mesmo o que se estudar nela. Coincidência ou não, e não me incomodo se eu usar aqui lugares-comuns a rodo, a melodia começa com o acorde sol. Vamos considerar que o calor emanado pelo astro, se considerado o local árido em que visita, é ensurdecedor. Temos um rei que governa para todos. O acorde puxa uma colocação vocal brilhante de Luiz Gonzaga, casando a voz com o marejar do fole. Sem dúvida, é maravilhoso de se dançar.

A fala do sertanejo é lembrada na letra, com os cacoetes que constam na própria gramática da vida. É por isso que o verbo flexionado oiei não deveria ser olhei. Simples. Olhei, o verbo olhar no pretérito perfeito do modo indicativo, fugiria da narrativa, que também se assemelha a uma oração, um rito de passagem para um paraíso, dependendo da fé do caboclo. E, por falar em lugar onírico, ganhamos, de cara, a lembrança de São João Batista. Isso para o mundo todo ver que as fogueiras juninas são as histórias revividas, a cada milho assado, a cada rojão, a cada gafieira.

Asa Branca nasce em 1947, quando se usava pó de arroz como um dos elementos femininos mais cobiçados do pedaço. Vitalina tanto acreditou que insistiu no cosmético, como explicou Jackson do Pandeiro. E, por estamos perto do dia primeiro de maio, lembraremos ao som da mesma canção, que o Comando Geral dos Trabalhadores foi extinto na mesma época do pó de arroz. Trabalhador sindicalizado era uma ameaça constante, um ninho de subversivos. O militar Eurico Gaspar Dutra era o comandante do navio. 

Em seguida, temos uma construção do português clássico, utilizando o pronome relativo qual, em vez do pronome relativo que. E me perguntei, com meus olhinhos de criança, a olhar praquele céu azul e muito azul da plataforma celestial: por que uma palavra que não está no meu dicionário da escola e, logo adiante, outra em profunda sintonia com as leis gramaticais. O azul não respondeu como eu gostaria, deixando para depois. Mas continuei perguntando. É aquele azul para não esquecer. É aquele azul que nunca uma tela minha alcançará, e somente tentará se aproximar, como um gato se aproxima do dono.

A primeira estrofe fecha com a pergunta a Deus do céu, por sinal o mesmo céu nordestino que conhecemos. E, para quem ainda não conhece, imagine um tapete limpo, com uma nuvem ou outra passando pelos passarinhos. O verso termina com uma interjeição, que pode parecer um recurso estético para imitar o ritmo. Talvez tenha essa intenção também. Mas o ai é a primeira palavra que falamos ao sentirmos alguma dor. A lágrima é por dentro do corpo.

A terra arde e a música pergunta por que tamanha judiação. Judas, a origem do termo. Judas Iscariotes, um ser ainda pouco estudado e compreendido. Sem as trinta moedas de prata recebidas pelo tesoureiro, não sei se hoje seria dia trinta de abril de dois mil e vinte no meu calendário. Sem as trinta moedas, meus livros didáticos não estariam coalhados de romanos. Sem aquelas moedas, o cinema não teria lucrado. Sem aquele beijo, nada de coelho. Nada de chocolate. 









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Parada das Miudezas

    A hipnose era certa. A Parada das Miudezas, no meu regimento, seria sempre uma visita obrigatória. Para uma criança de cinco anos de ida...