quarta-feira, 27 de novembro de 2019

A turma do papel







Há informações que só combinam mesmo ao vivo, cara a cara, olho no olho. Combinam com aquela expressão francesa téte-a-téte ou tête-a-tête. É um tipo de conversa que tem que ser conversa, da boa. E de dois: diálogo. E-mail não resolve. Um tem que sentir o olhar do outro. Se possível, o cheiro. O corpo do outro falando também. Muitos são os sinais nesse tipo de comunicação. Até mesmo os porquês não intencionais podem surgir. O que a pessoa não quis dizer, acabou dizendo. Pois é. Algum interlocutor é capaz de desvendar pela própria intuição ou por treinamento mesmo, como profissional.

Há informações escritas que são mais gélidas, mas essenciais para a burocracia diária: ofícios, cheques, notas fiscais. Mesmo assim, tudo consegue ser digitalizado. O jornal impresso está desaparecendo em alguns lugares, cedendo aos impulsos da pós-modernidade. Mas os que continuam, de algum modo, sobrevivem e se inscrevem na sociedade com um modelo, um verbo, uma rotina, um conjunto de decisões.

Algumas informações não conseguem ser resumidas em pequenos desenhos ou ícones. Apenas sugerem um tipo de emoção ou objeto. Falo dos pictogramas, os desenhos eletrônicos minimizados. No Japão, onde foram criados, recebem o nome de emojis. A palavra é a junção de dois termos: e, que significa imagem, mais moji, que significa letra. No final dos anos de 1990, o engenheiro Shigetaka Kurita foi o responsável por criar esses tipos, para facilitar a comunicação eletrônica, que depois foi aperfeiçoada por outros gênios da lâmpada. O norte-americano Nicolas Loufrani foi um deles, criador dos emoticons, combinando sinais do teclado para gerar outros ícones nas plataformas digitais.

Por mais que existam ferramentas dessas e por mais que eu as utilize, nada vai substituir uma frase. É claro que uso, aplico, gosto, até me empolgo e acho tudo muito engraçadinho. Mas sou da turma do papel. Estudo História porque gosto do movimento que não aparece de graça. Gosto do arquivo, do colecionismo, do documento cheirando a mofo, do testemunho insubstituível. Daquele ritual específico naquela comunidade, naquela data. Daquele filme que, mesmo em versões posteriores e elaboradas com todos os efeitos possíveis, continua fazendo efeito. Daquela rua que, mesmo com o asfalto em suas costas, carrega o manto do barro e dos pedregulhos, e o suor dos seus primeiros moradores.

Quero um dia, assinar e-books, claro. Não tenho animosidade com eles. Mas me sentirei escritora mesmo quando vir meus filhotes em forma de brochura. Comprados, emprestados, vendidos, reeditados, autografados, presenteados. Esses dias vêm chegar. Sinto. Sinto que o vento está soprando. Para você, querido leitor, deixo um sorriso. Deixo dois pontos e um sinal de parênteses com a abertura para a esquerda. Sim. Um emoji.  















domingo, 17 de novembro de 2019

Bate meu coração












No início da minha adolescência, eu entendia como coletivo um ônibus que transportava pessoas de diversas características. Tais características são inúmeras, mas a partir da perspectiva de que o sujeito não optou ou não conseguiu ir com veículo próprio, carona ou táxi. Num coletivo desse tipo cabem todos. Todos, mesmo. O povo vai entrando, entrando, entrando e se apertando, até que o motorista, com a colaboração do trocador, tenha a noção do limite.

Então, vamos. Vamos a alguns antônimos. Pode passar pela borboleta ou catraca. Pular, não vale. Pode cumprimentar as pessoas. Pode. Um sorriso vale. Simples. Vamos: gordos ou magros, feios ou bonitos, carecas ou cabeludos, simpáticos ou carrancudos, atléticos ou desengonçados. Também embarcam as particularidades do lado psicológico, que está embutido: honestos ou desonestos, pacíficos ou brigões, amuados ou amostrados, gastadores ou muquiranas, contidos ou exacerbados. Tem de tudo.

Bem antes, na minha infância, coletivo era lembrado por mim como um tipo de substantivo. Até hoje, é um dos meus temas preferidos para trabalhar em sala de aula, quando estamos na área da gramática. Nossa língua é o poço dos desejos. Jogo uma moedinha com a palavra cáfila e saem os camelos. Jogo outra moedinha com a palavra enxame e vêm as abelhas em movimento. Jogo outra moedinha com a palavra colmeia e aparecem as abelhas operárias trabalhando, num lugar específico, sob o olhar fuzilante da rainha. Jogo outra e outra e outra. 

De uns temos para cá, posso arriscar uns quinze anos, ouvimos a palavra coletivo ser destacada como a junção de pessoas relacionadas a uma causa cultural. Um exercício intensivo e benéfico. Não é exatamente uma turma, um grupo. Trata-se de uma reunião de cabeças em prol de um produto que gere cultura. Trata-se de um empreendimento muitas vezes invisível. Mas é uma empresa que promove um enorme capital simbólico, em se tratando de sociedade.

Quando surge um coletivo desse tipo, que enreda sonhos, que tece projetos transformados em fóruns, encontros, palestras, exposições ou apresentações, meu coração palpita de felicidade. Palpita porque ainda tem esperança. Palpita porque ainda tem gente que sabe que pode utilizar seu potencial herdado de tantas gerações, para fazer o bem e construir um mundo mais digno. Palpita porque sabe que somos inteligentes e vamos continuar aprendendo, mesmo com os tropicões nas pedras do calçamento ou das colinas. Palpita porque sabe que a educação salva muitas vidas.

Bate, bate meu coração, como nosso amigo compositor registrou. Disse e ainda diz, por isso também dizemos, que é raiz poderosa, aguada em verso e prosa. É isso. É isso e mais isso. Meu coração palpita porque pede para que cada coletivo se coloque como força plena de ação, como pulso firme e criativo, como aglutinador de presenças marcantes. Palpita porque se lembra que cada representante tem seu dever de se inserir na História. Palpita porque torce para que cada coletivo mostre sua raça, sua tinta, seu novelo, seu barro, sua coreografia, seu atabaque, sua viola, seu tempero. Que faça parte, sem medo, sem rancor. Um, dois, três: valendo.   







Imagem: Freepik

Parada das Miudezas

    A hipnose era certa. A Parada das Miudezas, no meu regimento, seria sempre uma visita obrigatória. Para uma criança de cinco anos de ida...