sexta-feira, 26 de maio de 2023

Parada das Miudezas

 

 A hipnose era certa. A Parada das Miudezas, no meu regimento, seria sempre uma visita obrigatória. Para uma criança de cinco anos de idade, no entanto, essa entrada dependia de quem liderasse o roteiro. Certa vez, Titia Nina foi a condutora das minhas aventuras no Centro comercial. Passar no Mercado Público, procurar um produto, dar um recado, verificar preços, beber caldo de cana, comer pastel, conversar e conversar. Eu já fazia reportagens e nem sabia.

Na Rua Padre Manoel Mariano, a gostosa Rua dos Legumes, estava, então, a Parada. Era comum, perto da entrada, avistar um varal, às vezes com balões e fitas, expondo brinquedos. Todos convidativos. Todos à venda, com suas promoções, seus dizeres, suas etiquetas penduradas. Nesse dia, com minha tia materna, meu olhar fuzilou uma enorme bola de plástico. Hipnótica, linda, rosa-choque, pontilhada de outras cores e tons cintilantes. Meu ego desejava. Fiquei pensativa.

De forma racional, eu não teria onde brincar. Qualquer murro naquela nave espacial rechonchuda seria um incômodo para a vizinhança. Meu endereço era na Rua Coronel Justino Bezerra, a movimentada Feira das Galinhas, numa casa originada pelo talento da equipe de Seu João Gonçalves, João Abelhinha. O formato das casas era semelhante e os muros que separavam os quintais não eram tão altos. Incomodar vizinho, nem pensar. Só se eu quisesse levar carão. Nessa época, Seu Fransquinho e Dona Guida e filhos moravam do lado esquerdo; do outro, a família de Dona Neuza. E eu tinha que dar um jeito. Fui maquinando.

Minha tia, ao saber daquela ansiedade pelo consumo, propôs um exercício justo, mas muito doloroso. Terrível. Eu ganharia a bola, mas jogaria fora a chupeta. Gente, que martírio. Eu, na minha meninice profunda, aprendendo, num baque, o que era o poder da palavra. Sim, eu aceito. Sim. Sim. No dia seguinte, lá estava o brinquedo dos sonhos. Que alegria. Mas, na boca, ainda reinante a dita coisa salivada.

A repreensão veio num foguete. Baixei a cabeça, segurando o consolo, tremendo, tremendo. Uma tesourinha escolar foi cúmplice da cena. Cortei. Cortei devagarinho. Cada rasgão era um balanço na minha memória. Mais um ano com a geringonça, a mastigação estaria comprometida. A parte que sustentava o bico era meio alaranjada, com um adesivo bonito e chamativo, mostrando um lago com uns patinhos se divertindo. Adeus. Sumiram na lixeira.

A Parada das Miudezas, loja do meu amigo Willame Braga, fez um benefício à minha dentição e, sobretudo, ao meu caráter. Eu, a pequena consumidora, começava a lidar com uma das formas mais duras de sustentar uma promessa. Com o presente nas mãos, mudei na hierarquia, por minha conta. Com poucos centímetros de altura, fui me achando no direito e no dever de auxiliar as colegas que ainda não tinham se libertado da mania. Difícil. Faltava em mim a ciência didática.   

Para a espera de alguns adultos invejosos, a bola furou, em poucas semanas. Mas, confesso, eu nem sentia mais falta da moeda de troca. Estava ligada na preparação para a primeira série, uma nova etapa das letras e dos números. Abria-se o Primeiro Grau, período essencial para formar muito do que sou. Os mosaicos da Escola Nossa Senhora do Carmo indicavam outro momento do jogo. Sala maior. Uniforme diferente. Meu Conga azul e branco, um amuleto. E um plano secreto já estava traçado, rumo à próxima libertação: exterminar a colônia de piolhos da cabeleira brilhante. A coceira insistia em me denunciar, em todo canto.






Imagem adaptada do Freepik



    

sexta-feira, 27 de maio de 2022

Serena de ideias

 


A tela mista faz nascer a vontade de estabelecer um diálogo ainda mais heterogêneo com quem vai receber a obra. Essa recepção não é somente para quem encomenda o quadro. Qualquer pessoa que estiver, em plena consciência, interpretando o que é exibido, passa a ser uma recepcionista do objeto. A partir do instante em que olha o que está criado, faz uma crítica, mesmo que não publique, mesmo que não conte ao vizinho.

Um dos pontos mais belos dessa viagem é saber que cada leitor interpreta de uma maneira. Algo positivo e natural. Algo único. Cada um analisa a mistura como puder. Chamo de tela mista o resultado de alguns elementos: tinta, tecido, linha, papel, miçanga, fita, botão, plástico e o que puder brotar com a inspiração. Certa vez, uma amiga me falou que não gostava desse tipo de intervenção, que achava pobre, que preferia somente as tintas. Outra vez, um amigo sugeriu que eu não pintasse mais com acrílica, que migrasse para óleo, argumentando que o produto final seria mais elegante.

Gosto de ouvir as críticas. Realizadas com cuidado, com certo carinho, noto um estopim para outros achados experimentais. O que faço com as telas é experimento, um teste prazeroso. Apesar de compreender certas técnicas, é a voz da intuição que chama mais forte. Foi depois de ouvir uma singela crítica, e examiná-la com paciência, que resolvi sair das minitelas. Quando comecei a pintar mais frequentemente, e com envolvimento mercadológico, não saía dos dez, quinze, vinte centímetros. Achava aquilo tão normal. Sugeriram que eu fosse aumentando o tamanho de forma gradativa, para que eu não me impactasse. Deu certo. Descobri, então, que a experimentação é também uma abordagem mental. Acreditei que podia avançar na metragem da criação. Acreditei e fiz. Veio um medinho bobo. Passou.

A concepção mista, contudo, ainda não chegou às telas maiores. É meu novo desafio nesse campo. Vale lembrar, até para mim mesma, urgente, que essa atividade é concomitante aos meus estudos acadêmicos. Os estudos são obrigatórios e obedecem a um prazo; as obras artísticas são livres e passam longe do calendário. Preciso dessas duas forças para manter um equilíbrio. As crônicas ficam na cola das duas vertentes, às vezes com cheiro de obrigação, às vezes mantendo um pacto com o espaço sideral da Literatura. Olho em mim, eu e o mundo, em cada palavra, cada vírgula, cada cor. Sou eu, Cristina. Pergunto. Respondo. Olho de novo.

Quando não consigo produzir muito bem uma coisa ou outra, sim, também sou eu. Poro a poro. Eu, aos pulos ou aos prantos, com uma extensa lista de painéis ainda brutos no cérebro, com pensamentos ainda nebulosos, com um coração manuscrito. É o eu dentro de vários eus. Pareço uma miniatura, eu, mais uma vez, numa enorme pausa, numa hibernação serena de ideias, numa sintonia com a correnteza. Comecei a respeitar esse intervalo, essa distância entre o pensar e o executar. Combinou.  

O material da tela mista em tamanho maior, por exemplo, faz tempo que está ali, me olhando. Diz, sorrindo: ei, criatura, precisamos surgir, precisamos de uma expressão, precisamos de uma vida, precisamos ser. É que o trabalho artístico torce para ser. Ser certificado, ser batizado, oferecer um título. Vence o que for mais adaptável. Na conclusão, aparece, então, um nome, um misto desse eu comigo. Não há dúvida. Sou eu, aos recortes, no quadro que se apresenta. Eu, acordada, em cada milímetro.






Flores / 20 x 20 cm /  Painel




Uma das minhas telas com técnica mista (tinta acrílica e miçangas). Adquirida pela amiga Priscila Silva. 



    

terça-feira, 5 de abril de 2022

domingo, 20 de março de 2022

Meu pé-de-serra

 



Quem nunca foi a um forró na zona rural não sabe o que já perdeu. Ainda há tempo para saborear aquele vento da roça, aquele vento cheiroso, com um pedaço de esperança, mirando um céu estrelado que jamais vai se parecer com o mundo urbano. Jamais. Forró com esse selo também é feito de urbanoides, assim como eu. Estou na lista dos que realmente gostam da roça, têm um pezinho na terra molhada ou na terra pedindo chuva para o plantio.

As pessoas que se dirigem ao forró no sítio, podem ter certeza, são bem recebidas. Não falta animação. Não falta par para a dança. O calor é logo descartado, tamanha a ventilação natural do lugar. Claro que existem os participantes não muito intencionados com bons pensamentos e atitudes. Uma dose ou outra de álcool e a confusão se agiganta. Os anfitriões são preparados, chamam seguranças particulares e pedem a presença da polícia. Muitas vezes, nem é preciso tanto alarde. Quem estiver perto logo aparta a briga, expulsa o confuseiro ou bate um papo rápido para explicar que ali não cabe aquele tipo de insinuação.

O forró no sítio, todos sabemos, é a origem do chamado forró-pé-de-serra, um gênero do forró que enlaça multidões em inúmeras casas de shows e faz a fama de tantos artistas. Por mais consagrado que seja o grupo, no entanto, é naquela roça que o artista se acha, é naquela palhoça que ele se identifica com o próprio gênero. Cansei de ver bandas nascidas e criadas no seio urbano com essa propaganda de pé-de-serra, mas que, no frigir dos ovos, nunca pisaram num lajedo. Tudo bem. Vale a homenagem que o pessoal quer fazer aos pioneiros. Alguns arriscam dizer que o avô ou bisavô ou tetravô nasceu no sítio tal e qual.

No forrobodó da zona rural, o autêntico, a banda respira o que há de mais original. Basta um acorde da sanfona, uma batida da zabumba e o tilintar do triângulo para diagnosticar como será a festa. Se o sanfoneiro for bom cantor também, está garantido o ingresso. Nem sempre isso acontece. E isso não significa que o evento seja ruim. O povo se engalfinha e nem escuta a letra.

Contamos com a sorte, nós, brasileiros, de admirar um excelente tocador, Luiz Gonzaga. Sanfoneiro, na mais fina essência, de olhos fechados. Também excelente cantor. Com uma voz especial, encorpada, por vezes aveludada, fazia o que bem queria para emocionar e alegrar quem estivesse no salão. Como artista não morre, nunca, o salão sempre estará aberto. O Rei do Baião trafega com tranquilidade por outros gêneros associados ao forró. Sua obra é prova disso. Gonzagão é o símbolo do pé-de-serra, que ganha balanço de sobra com xaxado, maracatu, xote, coco, marcha, maxixe, tango. E os aboios, orações musicadas. Um universo de personagens. Para quem quiser rezar, de forma mais concentrada, é só fechar os olhos e ouvir a lindíssima Ave Maria Sertaneja.

Falo do nosso querido Gonzaga, mas são muitos e muitos os representantes desse pé-de-serra abençoado. Cada um aciona um causo, uma história, algo que tenha me marcado nas minhas andanças. É comum lembrar os anúncios dos forrós nos sítios, nas rádios AM. Sem essa propaganda, a ciranda não está tão completa. É preciso avisar, chamar o povo, causar rebuliço. Bora, minha gente. E começa logo que escurece. Às dezoito horas, pode chegar.     

     






Imagem: Freepik







quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

Angola

 



Comecei a gostar de Chico Buarque de Hollanda sendo obrigada a estudar paroxítonas. Que obrigação dócil. Foi com a canção Mulheres de Atenas. Não bastava somente encontrar as palavras com as penúltimas sílabas tônicas. Tínhamos que descobrir quem eram essas gregas, que não tinham gosto ou vontade. Como eram essas Helenas, que não tinham sonhos, só presságios. Tecíamos, com elas, aqueles longos bordados, esperando nossos heróis.

Muitas canções de Chico me acompanham em tarefas de sala de aula. A obra dele tem quilômetros de assunto para problemas e soluções morfológicas, sintáticas ou semânticas. Em Morena de Angola, se tiver sambista no recinto, é hora de praticar. Tem menina e menino que é artista, há muito tempo. Canta, toca pandeiro, toca agogô, atabaque, tamborim, repique, tantan, timbal, reco-reco, violão, bandolim, cavaquinho, chocalho.

Chocalho. Um ótimo personagem. A canção, misto de samba e outros ritmos do batuque, vai brincando com a gente. Expõe a imitação do barulho do chocalho, que se destaca em quase todas as frases. Tudo por causa da sonoridade de um encontro de duas consoantes: c, h. É o mesmo som da letra xis, com o verbo mexer. E o autor diz: o chocalho é que mexe com ela. Esse sanduíche orgânico de figuras de linguagens merece outra crônica.  

Em termos pedagógicos, o chiado está garantido no espetáculo. Temos equipes montadas para todas as seções. O andamento das atividades deve ser animado, envolvente, sem chatice. Cada participante deve ficar no setor que mais sinta afinidade, com as equipes que tenham mais a ver com a sua sociabilidade. Aprende-se de maneira mais confortável e segura. Estou falando pelos meus. Oriento e me divirto também; aprendo e aprendo.

Se a morena é da Angola, vamos à História, saber de que maneira o povo angolano foi colonizado. Povo, inclusive, participante da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), portanto nosso irmão de idioma, com ricas particularidades geradas por dezenas de etnias. Povo que está nas entranhas do nosso país, pois é multiplicado ou miscigenado ao longo dos últimos trezentos anos, nos quatro cantos do mapa.   

Vamos também à Geografia, compreender que tipo de nação é a República de Angola. Podemos investigar como ocorre a interação com outros países da África e quais são as heranças políticas desse jovem lugar banhado pelo belo Atlântico. Vamos à Sociologia, investigar de que forma as classes sociais são distribuídas. Cabe-nos buscar a Filosofia, com seus questionamentos tão atuais. Há diversas possibilidades. Vamos falar sobre a arte angolana: pintura, literatura, dança, poesia, música. Vamos falar sobre a importância do esporte para aquele povo. Algumas ideias brotam para uma gincana.

Teremos guias em inglês e espanhol. Ideias brotam para outras disciplinas, como na Matemática, com seu trampolim a nos lançar ao mundo dos desafios lógicos, e podemos textualizá-los por meio de fábulas inspiradas na cultura angolana. Nossa parceira Estatística está pronta para auxiliar com dados, gráficos e porcentagens. Deliciosas operações.

    Toda a festa é supervisionada pelo corpo de jurados, composto por colegas professores, pedagogos, outros funcionários e convidados da escola. Temos direito de aplaudir um desfile da moda inspirada na costa oeste do continente africano. Não vamos esquecer, claro, os criativos quiosques com suas comidas típicas. Cabe sorteio, cabe campanha beneficente. E tem roda de capoeira. Tem. Tem sim. Salve. Salve, capoeira.







Trabalho da artista angolana Joana Taya


domingo, 30 de janeiro de 2022

Om

 






Acrílica sobre tela

Painel

30 x 30 cm 

2022 




                                                       

 Tela da amiga Silvana Leal. A primeira do ano. :) 





Parada das Miudezas

    A hipnose era certa. A Parada das Miudezas, no meu regimento, seria sempre uma visita obrigatória. Para uma criança de cinco anos de ida...