segunda-feira, 30 de setembro de 2019

O silêncio do silêncio





















O ato da meditação pode ser explicado de diversas maneiras. Não estou aqui para explicar de forma científica, não é meu objeto de investigação. O que sei, e acho que pouco sei, é muito mais relacionado a vivências, práticas e experimentos que chegaram para mim, de forma saudável e colaborativa. Aprendi a meditar de diversas formas e em diferentes lugares e com pessoas bem diferentes umas das outras, com convicções e credos bem diferenciados. Maravilha. Uma riqueza. Isso me leva a pensar e a acreditar que a meditação independe de religião.

O que falo aqui e agora pode até estar conectado com alguma doutrina, algum aspecto sagrado, alguma divindade específica e cultuada em algum lugar do planeta. Pode até estar, mas o que quero expressar está um pouco afastado disso. Sabemos que o divino se manifesta em incontáveis orações e múltiplas formas de meditação.

Quando aprendi mais sobre a arte de meditar, comecei a fazer algumas conexões com o que eu já havia experimentado. Quando aprendi a rezar, ainda criança, participava comigo mesma de um ato meditativo, ainda que regido com palavras prontas. Vale lembrar que eu, na época, nem sabia direito o que era rezar, orar, muito menos meditar. A oração do Pai Nosso, por exemplo, conhecida pela maioria dos que leem esta crônica, é, em si mesma, um caminho para a meditação. As palavras nos auxiliam, mas a concentração nelas é o segredo de toda a conversa. Então toda concentração é meditação. Não. De forma alguma. A meditação encerra uma atitude de guardar o momento, mas de maneira a alcançar a plenitude do silêncio, com uma finalidade maior. Para alguns, alcança o sagrado em sua essência. Para outros, relaxa o corpo. Para outros e outros, acalma a mente.

A leitura pode ser um ato meditativo: as palavras estão lá, na narrativa, auxiliando o nosso olhar. O ato de ler é solitário, individual, embora compartilhado com o autor da obra. Já falei disso aqui, noutro texto. Pode ser também compartilhado numa reunião, assembleia, encontro de duas ou mais pessoas; neste caso, não é meditação. A palavra meditativa, veja bem, possui um corpo único. Une-se ao silêncio de cada um. O meu silêncio, querido leitor, é meu; do mesmo jeito que o seu é seu mesmo, e ninguém mexe. É esse silenciar íntimo o aspecto fundamental do ato meditativo. Uma música instrumental pode auxiliar. Sim, pode. Faço isso repetidas vezes. Fico feliz. Acerto no alvo. Mas, para conseguir a meditação, em sua profunda clareza, é preciso o silêncio do silêncio. Encontrar essa meditação lá dentro: inconsciente, subconsciente, cérebro, coração, espírito, alma, o que seja melhor para a compreensão de cada um. Num evento com mil pessoas é possível fazer isso. Eu já fiz: deu certo. É lindo. Parece inacreditável. Num estádio de futebol, com oito mil pessoas, barulho de todos os lados. É possível.

O estado meditativo é diferente dos estados físicos, transcende os cinco sentidos, mora em outra atmosfera. Ficar sentado, numa posição confortável, com a coluna devidamente encaixada e os olhos fechados, é um bom exercício para começar. A respiração pode ser gerenciada de algumas formas. Inspirar e expirar somente pelas narinas, com a boca fechada, é um proveitoso início. Podemos, ainda, inspirar, prender o ar, contar até dez, expirar: um jogo divertido. E há tantos e tantos e tantos outros. Mas, é claro, a gente pode esmiuçar na próxima crônica. Tranquilo. Inclusive, posso falar sobre meus outros professores nessa área. Falei apenas em rezar o Pai Nosso. Conheci outras situações meditativas. Combinado? Pois é. Amanheceu.    

terça-feira, 3 de setembro de 2019

Conceição do Piancó






Mistérios tantos, mistérios de todas as formas. Conceição. Começa logo pelo nome, dedicado à Maria, mãe de Jesus, Nossa Senhora da Conceição, consagrada em diversas religiões adeptas ao Cristianismo, há mais de dois mil anos. A igreja matriz, imponente em sua construção, procura dar conta dessa homenagem. Aos fundos da grande obra, aparece um rio, que poucas vezes vi cheio, num curso de trabalho e harmonia. No mesmo cenário, coqueiros finos, de estatura entortada, uns vinte metros de estranha exuberância.

O calor da cidade sufoca. O vento demora a descer pelas cordilheiras imperceptíveis do vale, o Vale do Piancó. Vivo sempre a impressão geográfica de que as correntes ventosas, estonteantes, passam bem longe, lá por cima, deixando o vale sozinho, entranhado de secura. À noite, quando os grilos começam a sinfonia sertaneja, ao mesmo tempo o silêncio assusta e o escuro das vielas espera o frio ameaçador para os desavisados. Frio de deserto, que aparece com toda a sua força no despertar da madrugada. Assim é Conceição, na memória dos meus sentidos.

O melhor, no entanto, acontecia na rua Coronel José Peixoto de Alencar, Centro da cidade, na casa de Vovô e Vozinha. Um mundo encantado. Eu e Christiano desfrutamos muito desse doce império.

Vovô, Vicente Ramos de Lima, proprietário de uma barbearia, que muito eu visitava, malinava nas coisas e levava croque e carão. Carão bem explicadinho. Vozinha, Marina Oliveira de Lima, proprietária da delícia dos picolés de saco, os dindins; da almofada de fazer renda; de metros e metros de rendas, bordados, singelezas e crochês, além de finas aplicações em tecidos; de uma receita de galinha de capoeira que nunca foi copiada.

Titia Nina, a professora Ivanilda Oliveira de Lima, crochezeira fina, proprietária de LPs que adornaram meu imaginário e foram fundamentais para a minha vida cultural. Os preferidos: Ivanildo, o Sax de Ouro (Coletânea); Trio Nordestino (Corte o Bolo); Clara Nunes (Clara). Aqueles guarda-roupas com cheiro de talco sempre foram cuidados por ela, minha única tia materna, que sempre me encheu de presentes, além de e beliscões e sermões muito necessários. Ela ainda está lá, com meu Tio Evando, os guardiões dos mistérios da casa. Guardiões das pegadas invisíveis de Vovô e Vozinha, que há algum tempo moram no além da vida.

Cada trecho, cada parede, um encanto: a vitrola, o rádio, o petisqueiro, a cadeira de balanço, o tacho de ferro, a farmacinha, o pote com biscoito maisena, o garrafão de louça azul, o garrafão de louça marrom, a mesinha de centro, os potes de barro. A despensa. Ainda estão na minha cabeça: a gramínea, o galinheiro grande, o galinheiro pequeno, o pé-de-romã, os pés de bom-dia e boa-noite, o coqueiro mais velho, o coqueiro mais novo, o pé-de-pingo-de-ouro. Ainda estão: as lagartixas, os gatos da vizinhança, as muriçocas, o feijão gordo e vermelho, o arroz sempre branco e grudado, a farofa de cuscuz de milho com a gordura da galinha, o leite fervido duas vezes seguidas, a coleção de Jorge Amado na estante, as malas de chão, o oratório. O fogão a lenha desativado, mas intacto, como um totem.

O medo da pistolagem, os roletes de cana. Os tecidos da loja de Seu Pitanga, o Beco da Pimenta, o Armarinho de Ferreira. Macaúba, pitomba, goiaba, ciriguela. Os segredos. Milhões de segredos. Fofoca, fuxico. A estrada de barro, a viagem de quase cinco horas. O asfalto, a PB 400. A família Leite Braga. Os Caititus. Os Pires. As velhas amizades. Os tios e tias, os parentes e aderentes, os compadres e comadres. Os primos legítimos, segundos e terceiros. O pessoal da Mata Grande. Transparaíba: Seu Zé Damacena. A veraneio de Neudinho. O forrobodó da esquina: sanfona, zabumba, triângulo, pandeiro e reco-reco. Os velórios, as missas, as novenas e ladainhas. O pastoril azul, o pastoril vermelho. Os mistérios. Conceição.    








Mistura de bom-dia e boa-noite e quebra-pedra

Parada das Miudezas

    A hipnose era certa. A Parada das Miudezas, no meu regimento, seria sempre uma visita obrigatória. Para uma criança de cinco anos de ida...