terça-feira, 14 de abril de 2020

Sangue negro e cheiroso














     










Por entre uma página e outra, acertei meus ponteiros, num relógio mental descoberto pelas lavadeiras, fadas do cotidiano. Pelos cantos da brochura, embrenhei-me nas plantações de cana-de-açúcar, assisti a todas as possíveis lamentações do doidinho em seu mundo de perguntas, raspei incontáveis tachos, derramei meu sangue negro e cheiroso. Por entre uma e outra, senti a chibata, mas também assinei decretos e autorizei demolições; por entre uma e outra, as correntes doeram, mas apertei gatilhos. Por entre uma e outra, roí as unhas, mas vesti a echarpe.

Sem esperar, por certo, mas parte de mim poderia prever, senti cada batuque baiano, em outras plantações, as de cacau. Senti cada amargoso daqueles diálogos construídos por um amado, uma sentinela do seu povo, um alçador de desejos, um degustador de canela. Por entre uma página e outra, meu passaporte nem havia sido carimbado de forma oficial, mas comemorei os desafios românticos de uma moça de lábios de mel, infiltrando-me naqueles ipês floridos, devagar, ao passo que ousava conhecer as macabéas.

Nem era preciso pedir licença. Senti o maravilhamento daquilo, dada a minha natureza intrometida, de gente que necessita de fontes, fontes com pisadas sobrenaturais, fontes que mastigam o passado, fontes límpidas e sedosas, fontes barrosas de diálogos efervescentes, fontes a pensar a partir de anéis saturnianos ou aqueles da sociedade nórdica.

Por entre um suspiro e outro, meu senso mochileiro nem se tocou que tudo poderia mudar, tudo poderia renascer a cada linha completa ou livre, a cada rima ou a cada parágrafo, a cada tenda ou ramalhete. As pontas dos meus dedos dedilhavam uma febre de querer uma compreensão imediata, mas, por graça divina, cada degrau conduzia a um compartimento do cérebro, cada degrau me ensimesmava ou me expandia.

Que magia seria essa, tão nobre e avassaladora, não pude saber de imediato. Por entre um painel adocicado e outro, aparecia o navio de imigrantes, apareciam as geadas e apareciam os milhões de olhares e apareciam as bonecas de pano, os viscondes, os sacis, as cucas. Lembrei-me, ainda, que a viagem não é finita, que entre uma página e outra há uma pausa profunda e etérea, que entre um espaço e outro há uma passarela de realismos, de fantásticos, de lamentações e felicidades, de passaredos e passarinhos.

Como explicar ao outro o que senti quando entrei naquela vila, como explicar ao outro que me perdi naquela selva, como explicar ao outro o que vi quando naveguei naquele edifício no centro do oceano. Como explicar que, a cada virada de página, um som saía pelas costuras do papel; como explicar que, a cada cheiro de celulose processada, viria também o cheiro daquelas ruas cariocas, com Policarpo me escoltando.

Por entre uma lágrima e outra, até gargalhei e refiz meus redemoinhos, molhei a horta de ideias tontas, aprumei a coluna, mirei o alvo de possibilidades, sorvi o caminhar das mitológicas crateras: reli. Como explicar ao outro que a releitura é mais um cartão de embarque, como explicar ao outro que a imagem é texto etiquetado de conceitos e deflagrações, como explicar ao outro que a bula faz todo sentido místico, como explicar ao outro que a receita do brigadeiro carrega o dom da catequese histórica, como explicar ao outro que o penhasco surgiu naquele capítulo, como explicar ao outro que a montanha foi escalada inúmeras vezes somente naquele trecho, como explicar ao outro que sertões me ensinaram a ser forte, como explicar ao outro que os caetés e cariris marcham com seus maracás de forma perene.


Foi num bilhete sem data, invisível, que meu disco virtual começou a girar numa velocidade parecida com a dos dromedários, na areia quente, com um café coado para se acomodar e admirar o alpendre. Por entre os confetes de uma página e outra, ouvi um sussurro cifrado, pequenas vozes gregorianas. Por entre os ladrilhos de uma página e outra, os sermões me auxiliaram. Por entre os odores de uma página e outra, contei as moedas. As portas se abriram.      



  

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Exclamações e bolinhas ao vento






Um dos itens fundamentais para se dar bem numa redação de concurso é o cuidado com a pontuação. Isso nem é mais novidade. É apenas um lembrete. Não são poucos os textos em que me deparo com exclamações, uma chuva, uma ruma, um balaio. Se fosse somente o sinal conhecido, um traço na vertical com um ponto em cima da linha, até que eu conseguiria engolir. Mas, não. Há sinais inventados, aos montes.

É claro que a linguagem da internet é única, com regras próprias, que vão se modificando com intensa velocidade. Trata-se de uma área em plena ascensão, com estudos sérios e que não se deixam finalizar. Nesse poço de situações virtuais, a exclamação cresceu, migrou para um rumo exagerado. A utilidade do sinal, sabemos, serve para expressar um sentimento de espanto, alegria, surpresa, indignação. Podemos utilizar num aviso, num chamado, num pedido. Então, se estou alegre e quero demonstrar com uma ou tantas outras palavras, posso exclamar, sim. O sinal, somente um, revela o que quero no discurso. Pronto. Um. Basta um.

Vamos ao ambiente analógico. O autor do texto não se conforma, às vezes, e joga umas três exclamações. Outro tipo de autor, pode ser até o mesmo do primeiro exemplo, faz um desenho diferente: um triângulo isósceles com o vértice para baixo e uma bolinha em cima da linha do papel. Outro tipo de autor faz da trave um traçado sinuoso. Outro tipo de autor coloca um ponto ou uma bolinha abaixo da linha. Pois é. Na nossa língua, não me lembro desse sinal de pontuação no formato de uma bolinha, quase do tamanho de uma letra.

Quem já contou com redação por mim corrigida, percebeu meu olhar. Viu que não aliso. Circulo as exclamações desnecessárias ou repetidas. Preencho todas as bolinhas. Na cabeça de certo tipo de autor, bolinhas não são somente exclamáveis; também viajam nas letras i, jota e nos pontos finais, nas interrogações e nas reticências. O ponto-e-vírgula não escapa. Quando é aula em que se pode desenhar, aí vale qualquer forma geométrica e criativa possível. Tranquilo. Caso não esteja em foco essa ferramenta deliciosa da linguagem visual, vamos cumprir, portanto, o que manda o ritual do gênero pleiteado. Em se tratando de escrita para uma prova, teremos uma equipe treinada para apontar erros. A parte estética pesa para o candidato.

Certo dia, um texto enviado para vários blogs ou portais descrevia cenas exuberantes, personagens fortes. Não fosse pelo tanto de exclamação, eu teria me emocionado muito mais. Tudo bem, era uma crônica, algo mais descontraído. Mesmo assim, vi um milharal desidratado. Uma das cenas mais melancólicas. Acenei para comilanças que viriam a nascer, se o plantio estivesse saudável: pamonha, canjica, cuscuz, bolo, mingau. 

Numa das minhas primeiras aulas sobre dissertação, escrevo cinquenta dicas sobre o tema. Apenas palavras-chave. No decorrer de, pelo menos, três encontros, vou explicando: o que deve ser evitado; o que nem de longe deve ser elaborado; o que é importante fazer. Alguns falsos leitores ou preguiçosos de carteira reclamam na minha cara e consideram esse meu plano uma espécie de ensaio para o terrorismo. Respiro fundo, miro bem na pupila do sujeito e digo que são as regras e que eu não as inventei. E ainda falo assim: o bom aluno é aquele que copia o que o professor está falando, ou seja, escreve o que não necessariamente está escrito no quadro, no livro didático ou num arquivo compartilhado por e-mail.

Não sei se fui tão boa aluna assim, mas esse treinamento me aperfeiçoou na vida futura de repórter. Uma pena eu ter jogado no lixo tantos blocos e cadernetas; eles me diriam uma série de coisas, uma centena de cristinas.       








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quinta-feira, 2 de abril de 2020

Talvez os minutos surgissem


























Mesmo enfileirados, entendíamos o que se passava a trinta metros de distância. Entramos num meio de transporte. Não era ônibus, van, nave, nada que eu tivesse visto. Mas, de todos os meios, parecia um trem subterrâneo. Sentamos. Havia um ícone em cada poltrona, indicando nosso novo nome e nosso novo número. Nossas aparências mudavam gradativamente, a cada ponto de apoio. Embarcavam, nesses pontos, dezenas de outros seres, que já não eram mais pessoas, mas um misto de gente e luminosidade, bicho e centelha. Assim, de ponto em ponto, parecíamos nos confrontar com nosso mundo anterior. Paramos em pelo menos cem pontos. Não contei de verdade, pois adormeci. O sono era profundo e, ao mesmo tempo, real, pegajoso, intenso. Entramos noutro veículo, nos moldes parecidos com o trem de início. O mais recente, porém, trafegava de forma leve num terreno pantanoso. Por ali, víamos criaturas bem próximas do que nossa consciência avisava; em volta, todas caminhando naquele lodaçal característico, com aquelas plantas semiaquáticas, com aqueles anfíbios que se achavam os donos do pedaço. As criaturas pareciam satisfeitas. Apenas observávamos, em silêncio meditativo, pois éramos orientados a não sentir emoções perturbadoras da ordem. Um de nós, que havia entrado no ponto de apoio da planície, resolveu chorar. Foi, de maneira automática, eliminado. Desintegrou-se, em fiapos de luz. Continuamos firmes, sem dramas, sem perguntas, apenas observando cada trilha de acesso a um lugar ainda improvável. Num dos caminhos enlameados, paramos para obedecer a um sistema mínimo de trânsito. Por nós passou outro trem, multicor, barulhento. Era um barulho agradável, mas não posso classificar como música. Havia um ritmo, uma sequência lógica, uma harmonia que se guiava por alguns sinais do ambiente. Isso durou dois segundos. É o que eu imagino que seja, pois a noção de horas não existia ali. Um tempo indefinido. Algo a se pensar. Percebemos que existia uma fronteira a ser transposta. Alguns seres, que posavam como se fossem vigilantes, indicavam uma estrada de pedregulhos. Com esse comando, nosso trem saiu do pântano. Uma das criaturas, no entanto, resolveu seguir conosco. Aliás, resolveu cumprir uma determinação e grudar numa das portas. Não foi tão bizarro. Nossas mentes é que arquitetavam em progressão aritmética. Uma tela gigante apresentava nossos pensamentos, todos, de uma só ninhada. Trilhões de ideias, medos, estigmas, sombras e passaportes, vibrando num acorde desmedido, para que ninguém ousasse revelar o segredo. Um de nós tentou capturar outro pensamento. Foi enredado por uma névoa estranha, que imitava um fiscal de pátio. Nossa voz saía em canudos, por um cânion que aparecia a cada compartimento temporal. Talvez os minutos surgissem. Cada tubo ecoava noutro trem, que vinha tão lento, que adormecemos dentro do sonho. Tivemos certeza que era sonho e que não teríamos capacidade de sair dali sem que todos concordassem. Olhávamos uns para os outros de forma calorosa, animada, risonha. De forma esperançosa: recheada de chocolate. Não percebemos, porém, que todos estávamos noutro trem, mais festivo, mais convidativo. Pisamos no solo, velho conhecido. Éramos incapazes, por enquanto, de falar sobre o que sonhamos em conjunto. Mas sabíamos. No meio daquilo tudo, salvou-se um emaranhado de palavras e sentimentos. Saltitou. Brilhou. Bem na nossa frente, foi se erguendo. Tornou-se parte de tantos mundos. Combinou termos, sílabas, sons, apetrechos verbais. Combinou lembranças, personagens, sentidos. Nasceu o poema do dia. 




Parada das Miudezas

    A hipnose era certa. A Parada das Miudezas, no meu regimento, seria sempre uma visita obrigatória. Para uma criança de cinco anos de ida...