segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Quinquilharias








Dentro das gavetas do pensamento há aquela poeirinha esquisita de mágoa, que vai se amontoando com outras poeirinhas que entraram com o vento. Sim, entraram. Entraram com o vento, depois de abertas naquele dia propício a pequenos ranços enlatados em suposições. Cada suposição mergulhou numa reclamação enrabichada em outros pensamentos, de outras gavetas de ideias. Cada ideia conteve, em sua essência, um fragmento de quase certeza, aspecto duvidoso de coisa pensada e polida com garatujas de frases feitas. Chamemos os bombeiros.

O armário de sentimentos é poluído, pouco a pouco, sem que a pessoa perceba que cada papel foi sucumbido à colônia de traças enganosas, as mesmas que contaminaram os grandes planos que ainda se construíam. Para articular o cemitério de bugigangas, o pensamento, se não vigiado, vai se aglomerando num canto de parede, cujas aranhas em teias recém-descobertas serão as próximas a confabular segredos. Se não vigiada, cada cera de pensamento vai, de forma amalgamada com outras ceras, assando um bolo de machucados, com feridas semiabertas, prontas para a apreciação dos mosquitos.

Muitas vezes, se não vigiado, o pensamento vem com os próprios mosquitos, estes com capacetes superpotentes, capas heroificadas, e prontos para o ataque. Vêm, ainda, na mesma comitiva, tabletes de ilusões. Caso não tenhamos o mínimo de cuidado, cada ferpa vai se coisificando nas cortinas da memória e formando um alambrado de recordações que nem deveriam ter sido erguidas.

Outros insetos são ativados, aqueles microscópicos, e as quinquilharias ganham voz. Quando pensamos que não, já falamos. Pois é. Desse jeito é o universo dos pensamentos, os primeiros a largar na corrida, querendo chegar a um pódio qualquer, a depender da direção da nossa carreta. A cada vontade surrupiada pela mudança de tempo, o pensar começa a ser governado por um besouro, daquele mesmo modelo que circula a lâmpada. Voltas e voltas. Voltas e voltas.

Cada raspa de grude no coração é um zíper se abrindo, lentamente. Abre em tom de suspense, para que bactérias do além, montadas em dromedários do passado, possam operar num violento murmúrio. Esse tipo de passado, que não volta ou auxilia, é feito datas mumificadas, que provocam uma caravana de restos de sujeira, aqueles lixos que dependem de uma boa vassourada com pinho e eucalipto. Cloro também, para inteirar o pacote de lembranças. Quem estaria livre desses guardados. Quem estaria totalmente em dia com as sensações. Quem. Pergunto.   

Cada tablete de pensamento, em camadas e camadas de desejos, flutua num silencioso cofre de sonhos. Sonhos que podem até ser realizados. Sonhos que podem até favorecer um mundo mais tranquilo. Sonhos que podem até ser compartilhados. Sonhos que podem até ser trilhados num caminho mais pueril. Sim. Ao som de doces melodias, ao som de sabiás, ao som de corais natalinos, ao som de crianças brincando na hora do recreio. Sim. Pensamento é arte.









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quarta-feira, 27 de novembro de 2019

A turma do papel







Há informações que só combinam mesmo ao vivo, cara a cara, olho no olho. Combinam com aquela expressão francesa téte-a-téte ou tête-a-tête. É um tipo de conversa que tem que ser conversa, da boa. E de dois: diálogo. E-mail não resolve. Um tem que sentir o olhar do outro. Se possível, o cheiro. O corpo do outro falando também. Muitos são os sinais nesse tipo de comunicação. Até mesmo os porquês não intencionais podem surgir. O que a pessoa não quis dizer, acabou dizendo. Pois é. Algum interlocutor é capaz de desvendar pela própria intuição ou por treinamento mesmo, como profissional.

Há informações escritas que são mais gélidas, mas essenciais para a burocracia diária: ofícios, cheques, notas fiscais. Mesmo assim, tudo consegue ser digitalizado. O jornal impresso está desaparecendo em alguns lugares, cedendo aos impulsos da pós-modernidade. Mas os que continuam, de algum modo, sobrevivem e se inscrevem na sociedade com um modelo, um verbo, uma rotina, um conjunto de decisões.

Algumas informações não conseguem ser resumidas em pequenos desenhos ou ícones. Apenas sugerem um tipo de emoção ou objeto. Falo dos pictogramas, os desenhos eletrônicos minimizados. No Japão, onde foram criados, recebem o nome de emojis. A palavra é a junção de dois termos: e, que significa imagem, mais moji, que significa letra. No final dos anos de 1990, o engenheiro Shigetaka Kurita foi o responsável por criar esses tipos, para facilitar a comunicação eletrônica, que depois foi aperfeiçoada por outros gênios da lâmpada. O norte-americano Nicolas Loufrani foi um deles, criador dos emoticons, combinando sinais do teclado para gerar outros ícones nas plataformas digitais.

Por mais que existam ferramentas dessas e por mais que eu as utilize, nada vai substituir uma frase. É claro que uso, aplico, gosto, até me empolgo e acho tudo muito engraçadinho. Mas sou da turma do papel. Estudo História porque gosto do movimento que não aparece de graça. Gosto do arquivo, do colecionismo, do documento cheirando a mofo, do testemunho insubstituível. Daquele ritual específico naquela comunidade, naquela data. Daquele filme que, mesmo em versões posteriores e elaboradas com todos os efeitos possíveis, continua fazendo efeito. Daquela rua que, mesmo com o asfalto em suas costas, carrega o manto do barro e dos pedregulhos, e o suor dos seus primeiros moradores.

Quero um dia, assinar e-books, claro. Não tenho animosidade com eles. Mas me sentirei escritora mesmo quando vir meus filhotes em forma de brochura. Comprados, emprestados, vendidos, reeditados, autografados, presenteados. Esses dias vêm chegar. Sinto. Sinto que o vento está soprando. Para você, querido leitor, deixo um sorriso. Deixo dois pontos e um sinal de parênteses com a abertura para a esquerda. Sim. Um emoji.  















domingo, 17 de novembro de 2019

Bate meu coração












No início da minha adolescência, eu entendia como coletivo um ônibus que transportava pessoas de diversas características. Tais características são inúmeras, mas a partir da perspectiva de que o sujeito não optou ou não conseguiu ir com veículo próprio, carona ou táxi. Num coletivo desse tipo cabem todos. Todos, mesmo. O povo vai entrando, entrando, entrando e se apertando, até que o motorista, com a colaboração do trocador, tenha a noção do limite.

Então, vamos. Vamos a alguns antônimos. Pode passar pela borboleta ou catraca. Pular, não vale. Pode cumprimentar as pessoas. Pode. Um sorriso vale. Simples. Vamos: gordos ou magros, feios ou bonitos, carecas ou cabeludos, simpáticos ou carrancudos, atléticos ou desengonçados. Também embarcam as particularidades do lado psicológico, que está embutido: honestos ou desonestos, pacíficos ou brigões, amuados ou amostrados, gastadores ou muquiranas, contidos ou exacerbados. Tem de tudo.

Bem antes, na minha infância, coletivo era lembrado por mim como um tipo de substantivo. Até hoje, é um dos meus temas preferidos para trabalhar em sala de aula, quando estamos na área da gramática. Nossa língua é o poço dos desejos. Jogo uma moedinha com a palavra cáfila e saem os camelos. Jogo outra moedinha com a palavra enxame e vêm as abelhas em movimento. Jogo outra moedinha com a palavra colmeia e aparecem as abelhas operárias trabalhando, num lugar específico, sob o olhar fuzilante da rainha. Jogo outra e outra e outra. 

De uns temos para cá, posso arriscar uns quinze anos, ouvimos a palavra coletivo ser destacada como a junção de pessoas relacionadas a uma causa cultural. Um exercício intensivo e benéfico. Não é exatamente uma turma, um grupo. Trata-se de uma reunião de cabeças em prol de um produto que gere cultura. Trata-se de um empreendimento muitas vezes invisível. Mas é uma empresa que promove um enorme capital simbólico, em se tratando de sociedade.

Quando surge um coletivo desse tipo, que enreda sonhos, que tece projetos transformados em fóruns, encontros, palestras, exposições ou apresentações, meu coração palpita de felicidade. Palpita porque ainda tem esperança. Palpita porque ainda tem gente que sabe que pode utilizar seu potencial herdado de tantas gerações, para fazer o bem e construir um mundo mais digno. Palpita porque sabe que somos inteligentes e vamos continuar aprendendo, mesmo com os tropicões nas pedras do calçamento ou das colinas. Palpita porque sabe que a educação salva muitas vidas.

Bate, bate meu coração, como nosso amigo compositor registrou. Disse e ainda diz, por isso também dizemos, que é raiz poderosa, aguada em verso e prosa. É isso. É isso e mais isso. Meu coração palpita porque pede para que cada coletivo se coloque como força plena de ação, como pulso firme e criativo, como aglutinador de presenças marcantes. Palpita porque se lembra que cada representante tem seu dever de se inserir na História. Palpita porque torce para que cada coletivo mostre sua raça, sua tinta, seu novelo, seu barro, sua coreografia, seu atabaque, sua viola, seu tempero. Que faça parte, sem medo, sem rancor. Um, dois, três: valendo.   







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segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Um cafezinho







Poesia é atitude que ultrapassa sentidos. Enlaça a mente, enlaça a gente, e desenlaça, e retorce. Poesia é ação. É ver o Sol se pondo e reconhecer o sistema poético envolvido. Palavras que circulam no pensamento. Uma pausa. Pensamento que circula nas palavras: respiração. É ver. É ver com o espírito. É você mesmo. Um olhar que não está tão acessível a terceiros. E podemos tornar esse olhar estendido a outros olhares. É aí que a ação se acha compartilhada.

A poesia se espalha: o ar acolhe as sílabas. Remonta as imagens. Amplifica as formas. Vamos lembrar que poesia não é somente um soneto redondo e fabricado. Vamos lembrar que a rima pode embelezar, mas não é cartão de embarque. A poesia é o aperto do botão emocional, é o que se esconde nos becos do fazedor do poema. É o que revela como o autor passou a produzir naquele instante, naquele enredo, com aquela temperatura para cada frase. E frase é além do que entendemos como verso. Aquela linha pendurada no tempo, entre um varal e outro de sentimentos. É algo depois do horizonte, infinito: é o batuque do coração lapidando cada análise. Se não for para analisar, está tranquilo também. A ação permanece entre nuvens.

Poesia: a jurema que serve para remédio ou para afugentar, com seus espinhos, os invasores no mato. Ou é fonte ritualística, com teor religioso e meditativo. Importante: essa poesia não é exatamente a planta. É o olhar que investimos sobre ela e transformamos em verbo. Chacoalhamos tudo num contexto. Pode haver um poema sem verbo, tudo bem. Mas o exercício poético é, dentro dele, uma ação verbal. Movimenta-se. Pinota nas capoeiras do invisível. 

A música é poesia pura. Não somente a letra ou a melodia que se irmanam. Vejamos a composição. O labor. O trabalho. E todo trabalho, seja ou não musical, envolve sua própria poesia, sua beleza ativa. Vejamos o exercício de um carpinteiro, ao fazer de um velho tronco uma cadeira. Vejamos o exercício de um padeiro, ao fazer da farinha de trigo um pão de ló. Vejamos o exercício de um professor ao explicar um conteúdo aos alunos. Vejamos o exercício da aprendizagem. Vejamos o exercício da troca de conhecimento. Vejamos.

Poesia n’alma. Poesia labirinto. Palavra que se perde, mas que se reencontra, que amedronta, que desafia. Palavra que socorre. Poesia é medicamento: nebulização para o presente, cauterização para as práticas, curativo para as esparrelas no mundo, hidratação nos tecidos sociais, injeção de sonhos.

Hoje e agora é poesia, embora eu sonhe. Agora é poesia viagem: navios de descobertas, aviões de intercâmbios, balões de solidariedade. Quero poesia de espanto: acorda, desperta, avisa. Quero poesia que fale a realidade, que discipline o cuidado com o próximo, que salve o dia apenas com um cumprimento. Sim, aquela: vem com o perdão, vem com o beijo e o abraço, vem com o botão da rosa, vem com a colmeia, vem com a passarada. Quero que venha com uma nação mais harmoniosa, sem achincalhe, sem desesperança. Que venha com a Lua cheia, com o clarão do relâmpago, com o cheiro da terra, com a xícara de café. Um cafezinho, por favor. Grata.

























segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Arte Mahikari










Falei no ato da meditação na crônica anterior, com base na oração do Pai Nosso. Combinei de falar um pouco mais sobre as minhas outras experiências. Ainda não consigo enumerá-las nem dizer se aquela ou aquela outra foi melhor. São vivências, no entanto, que não deixam de transparecer um caráter devocional, um oratório íntimo. A gente com a gente mesmo: eu com o meu eu, si consigo, o próprio ser, tempo presente.

Em meados de 1995, num passeio pelo Centro de João Pessoa, com o amigo e colega de UFPB, Geyzon Dantas, fui apresentada à Arte Mahikari, ensinamento da doutrina Sukyo Mahikari. Eu guardava certo desânimo e cansaço e ele resolveu me indicar uma prática que ele mesmo recebia. Na época, funcionava num pequeno salão, num primeiro andar, na Rua Miguel Couto. Lugar bem discreto e incrivelmente silencioso, apesar da localização que, no seu exterior, é barulhenta, ligando todo o fluxo automotivo da Rodoviária à Lagoa.

Silêncio. Puro silêncio. Uma das normas era tirar o calçado e ficar descalço ou com meias. Sentávamos ou deitávamos numa espécie de esteira ou colchonete ultrafino. Ali, esperávamos o aplicador da Arte. Parece um passe para os kardecistas ou uma ação de Reiki para os reikianos. Trata-se da imposição das mãos, concentrando o trabalho, lento e progressivo, em um Ser Superior. O aplicador, que foi, de certa forma, treinado para a tarefa, impunha uma das mãos ou as duas mãos em outros momentos, em direção a algumas partes do corpo do receptor.

O aplicador assume a função de elevar seu pensamento a quem os mahikaris chamam de SU (Senhor), o Criador dos Céus e da Terra. Não entendo como religião, mas filosofia de vida. Seja o que for, é benéfico e há regras, há uma sequência lógica, há uma motivação, há um grupo em comum. Fui outras vezes sozinha. De repente, aparecia algum conhecido. Olha, você aqui também, pensava. A pessoa pensava também. Depois nos falávamos que era a mesma impressão. E tudo ficava bem.

Durante as aplicações, os sentimentos eram diversos. Com certeza, era um tipo de meditação. Muitas vezes, senti bastante os pontos de energia do corpo, queimando em brasa. Muitas vezes, adormeci e, depois de alguns minutos, vieram me acordar. Muitas vezes, entrei num estado de paralisação dos sentidos. Muitas vezes, entrei numa dimensão diferente, espécie de portal energético. Muitas vezes, chorei em silêncio.

A técnica se chama Arte porque é a união de três itens essenciais para o nosso bem-estar: saúde, harmonia e prosperidade. Os três unidos conduzem o praticante a um cotidiano mais pacífico, em sintonia com o equilíbrio da Natureza. E a Natureza é a expressão da existência divina. Assim ensina o fundador da obra, o japonês Sukuinushisama, o Primeiro Grão-Mestre Kotama Okada. Os adeptos, mesmo seguidores de religiões diferentes, são responsáveis por trabalhar pela paz no mundo. Veja que não é pouca coisa. Uma responsabilidade tremenda, começando pela paz dentro de cada um. Para termos uma ideia da importância da prática, a cidade e o Estado de São Paulo decretaram um dia no calendário, como do Dia da Sukyo Mahikari: 27 de fevereiro, dia do nascimento de Sukuinushisama. Há 75 países com a semente plantada. Que lindo. Quem quiser saber mais, pode entrar no site: www.sukyomahikari.org.br









segunda-feira, 30 de setembro de 2019

O silêncio do silêncio





















O ato da meditação pode ser explicado de diversas maneiras. Não estou aqui para explicar de forma científica, não é meu objeto de investigação. O que sei, e acho que pouco sei, é muito mais relacionado a vivências, práticas e experimentos que chegaram para mim, de forma saudável e colaborativa. Aprendi a meditar de diversas formas e em diferentes lugares e com pessoas bem diferentes umas das outras, com convicções e credos bem diferenciados. Maravilha. Uma riqueza. Isso me leva a pensar e a acreditar que a meditação independe de religião.

O que falo aqui e agora pode até estar conectado com alguma doutrina, algum aspecto sagrado, alguma divindade específica e cultuada em algum lugar do planeta. Pode até estar, mas o que quero expressar está um pouco afastado disso. Sabemos que o divino se manifesta em incontáveis orações e múltiplas formas de meditação.

Quando aprendi mais sobre a arte de meditar, comecei a fazer algumas conexões com o que eu já havia experimentado. Quando aprendi a rezar, ainda criança, participava comigo mesma de um ato meditativo, ainda que regido com palavras prontas. Vale lembrar que eu, na época, nem sabia direito o que era rezar, orar, muito menos meditar. A oração do Pai Nosso, por exemplo, conhecida pela maioria dos que leem esta crônica, é, em si mesma, um caminho para a meditação. As palavras nos auxiliam, mas a concentração nelas é o segredo de toda a conversa. Então toda concentração é meditação. Não. De forma alguma. A meditação encerra uma atitude de guardar o momento, mas de maneira a alcançar a plenitude do silêncio, com uma finalidade maior. Para alguns, alcança o sagrado em sua essência. Para outros, relaxa o corpo. Para outros e outros, acalma a mente.

A leitura pode ser um ato meditativo: as palavras estão lá, na narrativa, auxiliando o nosso olhar. O ato de ler é solitário, individual, embora compartilhado com o autor da obra. Já falei disso aqui, noutro texto. Pode ser também compartilhado numa reunião, assembleia, encontro de duas ou mais pessoas; neste caso, não é meditação. A palavra meditativa, veja bem, possui um corpo único. Une-se ao silêncio de cada um. O meu silêncio, querido leitor, é meu; do mesmo jeito que o seu é seu mesmo, e ninguém mexe. É esse silenciar íntimo o aspecto fundamental do ato meditativo. Uma música instrumental pode auxiliar. Sim, pode. Faço isso repetidas vezes. Fico feliz. Acerto no alvo. Mas, para conseguir a meditação, em sua profunda clareza, é preciso o silêncio do silêncio. Encontrar essa meditação lá dentro: inconsciente, subconsciente, cérebro, coração, espírito, alma, o que seja melhor para a compreensão de cada um. Num evento com mil pessoas é possível fazer isso. Eu já fiz: deu certo. É lindo. Parece inacreditável. Num estádio de futebol, com oito mil pessoas, barulho de todos os lados. É possível.

O estado meditativo é diferente dos estados físicos, transcende os cinco sentidos, mora em outra atmosfera. Ficar sentado, numa posição confortável, com a coluna devidamente encaixada e os olhos fechados, é um bom exercício para começar. A respiração pode ser gerenciada de algumas formas. Inspirar e expirar somente pelas narinas, com a boca fechada, é um proveitoso início. Podemos, ainda, inspirar, prender o ar, contar até dez, expirar: um jogo divertido. E há tantos e tantos e tantos outros. Mas, é claro, a gente pode esmiuçar na próxima crônica. Tranquilo. Inclusive, posso falar sobre meus outros professores nessa área. Falei apenas em rezar o Pai Nosso. Conheci outras situações meditativas. Combinado? Pois é. Amanheceu.    

terça-feira, 3 de setembro de 2019

Conceição do Piancó






Mistérios tantos, mistérios de todas as formas. Conceição. Começa logo pelo nome, dedicado à Maria, mãe de Jesus, Nossa Senhora da Conceição, consagrada em diversas religiões adeptas ao Cristianismo, há mais de dois mil anos. A igreja matriz, imponente em sua construção, procura dar conta dessa homenagem. Aos fundos da grande obra, aparece um rio, que poucas vezes vi cheio, num curso de trabalho e harmonia. No mesmo cenário, coqueiros finos, de estatura entortada, uns vinte metros de estranha exuberância.

O calor da cidade sufoca. O vento demora a descer pelas cordilheiras imperceptíveis do vale, o Vale do Piancó. Vivo sempre a impressão geográfica de que as correntes ventosas, estonteantes, passam bem longe, lá por cima, deixando o vale sozinho, entranhado de secura. À noite, quando os grilos começam a sinfonia sertaneja, ao mesmo tempo o silêncio assusta e o escuro das vielas espera o frio ameaçador para os desavisados. Frio de deserto, que aparece com toda a sua força no despertar da madrugada. Assim é Conceição, na memória dos meus sentidos.

O melhor, no entanto, acontecia na rua Coronel José Peixoto de Alencar, Centro da cidade, na casa de Vovô e Vozinha. Um mundo encantado. Eu e Christiano desfrutamos muito desse doce império.

Vovô, Vicente Ramos de Lima, proprietário de uma barbearia, que muito eu visitava, malinava nas coisas e levava croque e carão. Carão bem explicadinho. Vozinha, Marina Oliveira de Lima, proprietária da delícia dos picolés de saco, os dindins; da almofada de fazer renda; de metros e metros de rendas, bordados, singelezas e crochês, além de finas aplicações em tecidos; de uma receita de galinha de capoeira que nunca foi copiada.

Titia Nina, a professora Ivanilda Oliveira de Lima, crochezeira fina, proprietária de LPs que adornaram meu imaginário e foram fundamentais para a minha vida cultural. Os preferidos: Ivanildo, o Sax de Ouro (Coletânea); Trio Nordestino (Corte o Bolo); Clara Nunes (Clara). Aqueles guarda-roupas com cheiro de talco sempre foram cuidados por ela, minha única tia materna, que sempre me encheu de presentes, além de e beliscões e sermões muito necessários. Ela ainda está lá, com meu Tio Evando, os guardiões dos mistérios da casa. Guardiões das pegadas invisíveis de Vovô e Vozinha, que há algum tempo moram no além da vida.

Cada trecho, cada parede, um encanto: a vitrola, o rádio, o petisqueiro, a cadeira de balanço, o tacho de ferro, a farmacinha, o pote com biscoito maisena, o garrafão de louça azul, o garrafão de louça marrom, a mesinha de centro, os potes de barro. A despensa. Ainda estão na minha cabeça: a gramínea, o galinheiro grande, o galinheiro pequeno, o pé-de-romã, os pés de bom-dia e boa-noite, o coqueiro mais velho, o coqueiro mais novo, o pé-de-pingo-de-ouro. Ainda estão: as lagartixas, os gatos da vizinhança, as muriçocas, o feijão gordo e vermelho, o arroz sempre branco e grudado, a farofa de cuscuz de milho com a gordura da galinha, o leite fervido duas vezes seguidas, a coleção de Jorge Amado na estante, as malas de chão, o oratório. O fogão a lenha desativado, mas intacto, como um totem.

O medo da pistolagem, os roletes de cana. Os tecidos da loja de Seu Pitanga, o Beco da Pimenta, o Armarinho de Ferreira. Macaúba, pitomba, goiaba, ciriguela. Os segredos. Milhões de segredos. Fofoca, fuxico. A estrada de barro, a viagem de quase cinco horas. O asfalto, a PB 400. A família Leite Braga. Os Caititus. Os Pires. As velhas amizades. Os tios e tias, os parentes e aderentes, os compadres e comadres. Os primos legítimos, segundos e terceiros. O pessoal da Mata Grande. Transparaíba: Seu Zé Damacena. A veraneio de Neudinho. O forrobodó da esquina: sanfona, zabumba, triângulo, pandeiro e reco-reco. Os velórios, as missas, as novenas e ladainhas. O pastoril azul, o pastoril vermelho. Os mistérios. Conceição.    








Mistura de bom-dia e boa-noite e quebra-pedra

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Ao vivo no rádio





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Minha primeira experiência radiofônica foi amadora e ao vivo. Eu costumava visitar a rádio Patamuté FM com minha prima, Dulcineide Quirino, pra bater papo com Beta, a tia dela. Beta, Betânia, muito querida com seus olhos esverdeados, era recepcionista. Naquelas idas e vindas, eu ficava vidrada no que o fenômeno rádio já traduzia pra mim, desde que me entendia por gente, brincando nas calçadas da Rua Coronel Justino Bezerra. O rádio se instalou no coração.

Passou-se um tempo. Num hiato de trancamento de curso na UFPB, resolvi pedir um espaço ao diretor de programação da FM, Wilson Furtado. Pedi pra fazer um teste. Passei. Não era somente testar a voz e a desinibição ao microfone, compreendendo que muitos me ouviam onde a onda alcançasse. Tive que aprender a mexer nos controles. Zé Nilton teve muita paciência pra me ensinar. Mexer nos botões não me interessava muito. Minha intenção, na verdade, era que a rádio voltasse a apresentar um programa que eu gostava: o Rock 94, nas tardes de sábado, das 15 às 17 horas. Rocha, agente da Caixa Econômica Federal de Cajazeiras, brilhantemente apresentava. Ali ele era o Rocha Rochedo, vocalista também da banda Apocalypse. Peça rara, o locutor e cantor havia sido transferido pra uma agência bancária em João Pessoa. As tardes de sábado não eram as mesmas.

Meu objetivo não era imitar Rocha nem mesmo conseguir um emprego. Nem de longe. Na minha doidice dos meus dezenove anos, eu queria mesmo era viver o rádio, respirar um pouco do rádio. Sentir o clima. Queria apresentar um programa, curtir o rock e fazer com que o povo ouvinte curtisse a minha seleção musical. Com auxílio do amigo Nonato Saraiva, outro roqueiro sem fim, criei umas notas sobre o mundo do rock, falando um pouco de cantores, bandas e álbuns. Por influência do meu irmão Christiano Moura, a lista continha pérolas dos anos 70 e 80. Alguma coisa dos 90. Também arriscava uns 60. Era mais um reviver do que atualizar. Não tocava nada muito pesado, embora até gostasse de algumas coisas. Gostava sempre das mais conhecidas. Os invejosos poderiam dizer que eram as mais manjadas. Eu botava um pop no meio e dava certo.

Como era bom pedir que aumentassem o volume com os internacionais Dire Straits, Pink Floyd, The Smiths, Beatles ou os nacionais Paralamas do Sucesso, Ultraje a Rigor, Legião Urbana, Barão Vermelho, Titãs. E os cantores e cantoras do gênero daqui ou do estrangeiro: Lulu Santos, Rita Lee, Raul Seixas, Billy Idol, Prince, Cindy Lauper. Uau. Como é bom relembrar. Nessa época, conheci Conrado, que já fazia rádio e depois mudou o nome pra Kaliel Conrado. Viramos bons amigos até hoje. 

Todos os sábados, um ouvinte ia lá na porta do estúdio e pedia pra eu tocar qualquer uma do Guns N’ Roses. Ele era muito fã da banda e às vezes se vestia com camisetas que exibiam fotos do vocalista, Axl Rose. Trabalhava numa loja de calçados. Menino atencioso e educado. Estava claro que o interesse dele não era em mim, mas na música. Tudo bem. Aí eu fazia a vontade dele e tocava uma mais leve da banda californiana.

Meu sábado estava, desse jeito, musical. Fiquei devendo tanta coisa: Jethro Tull, Nazareth, Yes, The Ventures. Também Mutantes e outros tantos que tocam e compõem rock no nosso Brasil alado e misturado: Zé Geraldo ou Zé Ramalho. Chico Science ainda era uma grande novidade. Estava mais do que provado que eu não dava conta desse painel de personagens.

Depois de alguns meses apresentando também O Som da Noite, um conjunto de músicas românticas, das 20 às 22 horas, voltei pra capital e fui terminar meu curso. Levei a vida mais a sério. Aqui vale um asterisco pra dizer que, à noite, o programa tocava até o que eu não queria muito, como José Augusto, Fábio Júnior, Sandra de Sá, Rosana, Fafá de Belém ou Roupa Nova. Tudo pelo sagrado direito do ouvinte. Lidar com essa democracia não foi tão rápido na minha cabeça. Mas, era ao vivo. Vivo, vivíssimo.

Eu tinha que fazer algo que até hoje tenho que aprender: ser ágil. Fazia, na minha velocidade, uma rápida seleção, já que não havia qualquer coisa gravada. Aí eu colocava umas melodias roqueiras no meio. Umas guitarras bem puxadas, do tipo baladas de arrebentar a memória afetiva. Scorpions, U 2, A-ha, INXS e um George Michael pra extrapolar o toque de romantismo. E pra lascar o cano mesmo, uma marcante do Pholhas. Almair Furtado e Léo Silva me mostraram onde os LPs ficavam e quais eram os mais pedidos. Parecia fácil. Mas, era ao vivo. Eu que me virasse.

Ao voltar pra Cajazeiras, em 1999, experimentei outro vivo, o jornalismo. Vivo e dinâmico, outro ritmo, outra pegada, outra Cristina. Aí a história mudou. Mudou completamente. Entrei na turma da Rádio Alto Piranhas AM. Comecei a reviver a amplitude modulada que conheci na infância: aquele barulho, aquela sintonia, aquelas canções, aquelas vinhetas. Estava tudo ali, bem perto.

Fazer jornalismo, ao vivo, no rádio, era outro compasso. Eu não atuava mais como disque-jóquei e quase repórter cultural. Era a vez de experimentar, de manhã, o Microfone Aberto, com José Anchieta e Fernando Caldeira, na apresentação, e Alberto Dias ou Francisco José, na parte operacional. José Antônio de Albuquerque, que na infância eu via na Escola Nossa Senhora do Carmo como o pai de Letícia, passou a ser meu chefe, meu colega, meu eterno professor.

O período em que fiquei no programa matutino, e em algumas participações como repórter no vespertino Rádio Vivo, foi um aprendizado e tanto. Até pista no programa esportivo, fui. Arnaldo Lima, Ivanildo Dunga e Edmundo Amaro botaram a maior pilha. Aguentei uma única vez, no Estádio Higino Pires Ferreira, num jogo amistoso do Atlético com convidados. Pista tem que ter pique. Vi que era tão cansativo, mas tão cansativo, que fugi. Do mesmo jeito que fugi de transmissões noturnas de carnavais.

O rádio, ao vivo, ensina. Não tem emenda. É na hora. Chapa quente. Pensar pra falar: ligeiro. Uma boa estratégia pra trabalhar o autocontrole, o domínio de si mesmo. Ao vivo parece mais contagiante, mais parceiro, mais próximo.

Tenho saudade desse ser vivo, que entra nas casas, nos estabelecimentos comerciais, nos automóveis, e conquista as pessoas. Quem sabe, um dia, eu volte a me alimentar dessa energia boa radiofônica. Não exatamente do factual. O factual é necessário, mas deixo esse prato temperado para os meus colegas mais experientes. Os mais afoitos gostam também. Sei que, se um dia tiver que ser, será vivo, ao vivo. No couro cru. Combinado? Combinado.          

sábado, 10 de agosto de 2019

Pabulagem







A pessoa que emprega o gerundismo está convicta de que inventou a roda. É a pessoa que se diz letrada, que caminha num passo diferente. É aquela que teve a chance de frequentar a escola, ao menos ter acesso aos livros didáticos, receber lições de regras e exceções da língua. Há exemplos desse tipo que, dependendo do estágio social em que se encontra, usa o gerúndio como se fosse um mérito da fala. Sim. Em geral, é utilizado ou mal utilizado na fala mesmo. O falante cria a imposição de uma norma que nunca existiu, pra carimbar um status, pra dizer que fala muito bem, que é excepcional, que arrebenta na oratória.

Vamos relembrar o gerúndio: um verbo inacabado. Melhor: forma nominal que apresenta uma continuidade. Algo que se processa na frase, não se sabe em que momento termina nem se sabe quando começou. Sem modo ou tempo específicos. Precisa de um amigo verbo auxiliar. Mas só um mesmo.

O equivocado falador do gerundismo bota pra quebrar. Diz assim: “Vou estar passando...” Bastaria: “Vou passar...” Pronto. Sem mistério. Mais econômico. Mas a pessoa gerundista usa o verbo ir e estar a rodo, de boca bem cheia, introduzindo o assunto. São os dois mais utilizados nesse tipo de confusão, como se fosse uma dupla inseparável, um par de jarros, o oxigênio e o gás carbônico da fotossíntese. A pessoa usa também plurais pra florear a oração, pra enfeitar ainda mais a pabulagem.

Sinceramente, diante disso, sou mais o falar qualquer do povo, da ponta da rua, da feira livre, da conversa sem compromisso, da extinção inconsciente da gramatiquice. O importante é entender e se fazer entender e conviver harmonicamente. Não existe falar errado. Conheço casos e mais casos de gente digna que fala como pode, utiliza a concordância que mais convier para o bom andamento da comunicação. Gente que teve que trabalhar muito cedo pra sobreviver. Gente que não teve a oportunidade de conhecer uma sala de aula, uma escola, um alguém pra ensinar.

Mas, caro leitor, fique certo de que tudo o que escrevi agora pode não servir daqui a vinte anos. O gerundismo pode virar regra ou uma convenção pacífica. Aquele jeitinho manhoso: já que todos estão indo, ah, então, vamos. Talvez dentro do balaio das leis que depois se desmancham como balas de coco: é fácil colocar um adendo, um parágrafo, um arabesco. É aquele puxadinho na construção.

    









segunda-feira, 5 de agosto de 2019

O Bozo chegou






Alô, criançada: o Bozo chegou, trazendo alegria pra vocês e o vovô. Esta frase era o primeiro trecho da música de abertura do programa de TV. Todas as manhãs, de segunda a sexta-feira, das nove às onze horas, meu mundinho infantil se encantava. Durante as tardes, muitas vezes, a estratégia se repetia. O cenário era um picadeiro, com algumas arquibancadas compostas por crianças e alguns adultos. O SBT era o responsável por dar vida ao palhaço Bozo e sua turma.

Os amigos mais frequentes do protagonista eram outros palhaços: Vovó Mafalda, Papai Papudo e Kuki. As palhaçadas e trapalhadas eram muito tranquilas, dóceis, simples. Algumas crianças se apresentavam num determinado número ou quadro do programa, espécie de show de calouros. O candidato podia cantar, contar piada, fazer cambalhota, qualquer atrativo que mobilizasse a todos. Acontece que cada personagem, no júri de fantoches gigantes, dava sempre a mesma nota, não importava o tipo da apresentação, cor, talento ou tamanho do artista-mirim. A gente, telespectador, sempre esperava, no fundo, uma novidade, mas, de certa maneira, gostava da mesmice. Bozo, Bozoca, nariz de pipoca. Os jurados: Candinha, Zico, Zecão, Maroca e um ou outro humano que aparecia como convidado.

Quando fui crescendo, percebi que o palhaço era um ator, que também trabalhava como jurado noutro programa da televisão de Sílvio Santos. Na escola, minhas amigas lembravam que mais outros dois ou três atores interpretavam. Ou seja: Bozo eram muitos. Realmente. Disso eu não gostava. Mexia com minha bobice. Atacava minha ingenuidade.
Ele lia as cartas dos fãs. Não, não cheguei a mandar. Mas tive vontade. Mandei pra Turma da Mônica. Vixe. Isso é outra prosa. Vamos ao espetáculo circense e televisivo. Tempos depois, fiquei sabendo que Bozo era uma marca, comprada, ou melhor, alugada, pelo canal. A empresa norte-americana, por isso as cores do figurino do palhaço, repartiu-se em muitas. Cada uma era especialista em algo: montagem, roteiro, elenco, cenário. Ganhou-se bastante dinheiro com essas peripécias. Cada país tinha seu jeito específico de tratar o tema.

Tempos depois, eu já adulta, pegava a mim mesma lembrando com carinho da música Tumba na catumba. Eu cantava direto, até enjoar. A letra dizia as horas, de uma às dez. Quando o relógio bate a uma, todas as caveiras saem da tumba. Refrão: Tumba na catumba, tumba tá. Bis. Quando o relógio bate às cinco, todas as caveiras apertam o cinto. Refrão. Bis. E as rimas meio sem nexo aconteciam. Vovó Mafalda cantava num clipe e a turma toda dançava. Hilário. A gente se divertia e imitava todos os personagens. Fanta Laranja era o refrigerante patrocinador, campeão dos aniversários. Não consigo acreditar no quanto já bebi desse borbulhar de açúcares. 

Lembro de alguns dos desenhos animados, que entravam como participações especiais no circo. Algum integrante do rol de palhaços chamava. O Pequeno Príncipe, versão mangá, era certo. Cavalo de Fogo era outro que passava. Meio chato, eu achava, mas via. Punk, a levada da breca, às vezes falhava. A Nossa Turma, sim, todo santo dia. A música-tema até hoje está grudada na cabeça. Certa vez, faz tempo não, eu a ouvi em algum lugar, vinda pelo vento. Olha, só não chorei porque não me concentrei. O coração balançou e foi longe.

A Turma do Pernalonga era algo esperado. Até hoje gosto. Toda a patota tem alguma lição pra dar. Existe sempre aquela mensagem subliminar que a criança não capta de imediato, mas, ao crescer, lembra, analisa, concorda, discorda, pondera. O próprio coelho e seus amigos todos exibem narrativas redondas, prontas para o cotidiano: Gaguinho e Patolino são exemplos bem claros. O primeiro sofre com o preconceito dos outros e o segundo sofre com o pavio curto de si mesmo. Veja só, que atual.

Que saudade daquele Bozo. Ainda não vi Bingo: nome dado para não causar constrangimento com os direitos autorais. O longa-metragem brasileiro conta a história de um dos atores que fez o palhaço durante mais tempo. O rapaz se envolveu com situações perigosas construídas pela embriaguez da vaidade. Experimentou a fama como o objeto traiçoeiro que representa: corta, fura, atira, arranha, enlaça. Dizem que o ator que faz o personagem no filme, Vladimir Brichta, está impecável. Estou me devendo essa. História é para ser contada e recontada: que respeitemos as versões possíveis.

E meu sagrado imaginário infantil está no seu devido lugar. Ainda bem. Ufa. Quero continuar achando que há algo engraçado: as trapalhadas são ensaiadas e pueris, os fantoches são de brincadeira, os desenhos são uma atração especial. Os calouros recebem notas justas, há lisura nos comentários e a premiação é um delicioso pacote de bombons e caramelos. Pode até a iluminação falhar na hora do show. Pode até o som pifar, mas o público é sempre animado. Merece ser feliz.










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quinta-feira, 6 de junho de 2019

O pingo d’água




















Pouca gente dá importância ao acento grave. É o que nomeia o fenômeno da crase. Aquele mesmo: quando o verbo exige a preposição a e o próximo elemento é uma palavra feminina, que exige o artigo a. Juntando os dois, o compasso é craseado. Ocorre que, no texto anterior, errei a crase. Isso mesmo. Construí indevidamente um prédio de tijolos de açúcar, num terreno de algodão. A chuva alagou. Passei a semana pensando nessa minha façanha torta.

Para quem vive da palavra, é um erro que, se descoberto depois, martela, martela, martela. Bate na consciência. Aquela batidinha de valsa, que parece elegante somente aos ouvidos, mas chama para dançar. O erro martelou. Não vou dizer que é imperdoável porque existem coisas piores. Mas não foi bonito. O pingo d’água foi se multiplicando e abriu esta cratera de parágrafos que você está lendo.

O acento é uma situação bem escorregadia: aquele pedido de namoro do menino de quinze anos. Pense. O mundo tecnológico, em alguns casos, não aceita e interpreta como lixo eletrônico. Quando corrijo redações e outros textos, noto que sou mais condescendente com o esquecimento dos acentos em algumas palavras. É um pecado menos tóxico. Sou mais rente com as concordâncias verbo-nominais. Sonho em ser mais incisiva com certas opiniões, mas o jogo democrático me obriga a respeitá-las. Se for caso de polícia, tem nada não: a gente liga 190.    

Acento, sinal gráfico, tracinho pra lá e pra cá. Não são meros adornos. Merecem cuidado e atenção: guiar na pista molhada, achar o ponto do brigadeiro. Alguns, entretanto, já desapareceram. O trema, por exemplo, é uma marcação extinta na Língua Portuguesa, na reforma ortográfica mais recente. Talvez volte na próxima, daqui a uns vinte anos. Fico pensando. Fico me perguntando o que farão com o grave da crase. Fico me perguntando o que farão com o circunflexo, o famoso chapeuzinho. Meu primeiro nome: Ivânia. Raríssimo alguém me perguntar, quando pergunta meu nome completo, se tem acento. O hífen é outro sinal, que não é acento, mas arma ciladas. Creio que desapareça.

Estou falando do nosso idioma e com todo o respeito do mundo pelos sinais gráficos dos outros. O alfabeto árabe, por exemplo, é repleto de apóstrofos. O grego parece um desenho, de tão volteado. O africano é uma infinidade de códigos, pois é uma infinidade de povos. O guarani tem um charmoso til no ípsilon. O eslavo apresenta um circunflexo para cima, ou seja, ao contrário do nosso, que pode operar em consoantes. Os ideogramas chineses são junções de imagens da natureza. Os exemplos são múltiplos. Há línguas que já se foram, mas suas características aparecem entranhadas nos dialetos. E há palavras perfeitamente inteligíveis sem qualquer vogal. É isso aí. É o mundo.






Imagem: Freepik


quinta-feira, 23 de maio de 2019

Desde meninota





Janelas/20 x 29,5 cm/Colagem - papel sobre papel/Abril - 2016













           


  








Caro Cleudimar, bom dia. Seja em qual horário for, é bom dia, é dia de saber que a vida continua. Esta crônica-carta veio com certo atraso. Mas, em se tratando da palavra escrita não-factual, que é meu caso aqui e agora, é sempre tempo de escrever, é sempre tempo de abandonar um pouco o calendário e o relógio para manter algo palpável e durável para daqui a quantos anos forem possíveis. 

Cleudimar Ferreira publicou um texto no seu blog Cajazeiras de Amor. O artigo também foi publicado no blog Coisas de Cajazeiras, do meu irmão Christiano Moura. Isso foi em março de 2016. Como em História, para o pesquisador, o que estiver dentro do período de cem anos é considerado bastante jovem, estou no lucro.

Tomei um susto logo no título: A arte de Cristina Moura promete. Fiquei em dúvida se essa promessa seria concretizada logo. Fiquei me perguntando, exaustivamente, se a promessa seria para mim. Se a promessa seria para a sociedade cajazeirense. Se a promessa seria para o mundo. De todo jeito, continuo achando que a arte salva e salva em qualquer dimensão. Fiz alguma coisa para terapia, outra para vender, outra para presentear, outra para me realizar. Salvei-me em todos os casos.

Desde criança que compactuo com todas as esferas da arte. No universo infantil, perpassavam a cor, a mistura das cores, o desenho, a colagem, a ligação das palavras com as ilustrações, os diferentes suportes. Minha mãe, Ivanícia, de maneira sábia, organizada e libriana, guardou muitas dessas minhas incursões artísticas de meninota. Certa vez, e bem recente, fiz uma triagem dolorosa. Editar é sempre um trabalho complicado, ainda mais de coisas minhas. Mas, nesse exercício, selecionei uns mimos, uns trabalhos de escola, umas coisinhas fofas. Em breve, postarei no meu blog e avisarei por aqui também e em outros meios.

Uma das fotos postadas com o seu artigo, Cleudimar, é uma colagem que se chama Férias. Eu, realmente, tinha acabado de entrar de férias e decidi reunir vários pedaços de papel: revistas e folhetos de propaganda de lojas de eletrodomésticos ou supermercados. Selecionei somente os trechos lisos, sem fotos ou textos, e fui colando, colando. O suporte foi papel couchê. Foi uma terapia tão deliciosa e intensiva, que terminei o quadro e já comecei outro. Um dia quero fazer uma exposição somente com as colagens. Depois fui desenvolvendo outro tipo: colagens, mas deixando espaços em branco no quadro. É outra proposta. Cada espaço, espécie de silêncio, também exerce um poder. É linguagem.

Quanto aos trabalhos de pintura, opto sempre por acrílica. Fácil de dissolver em água. O solvente da tinta a óleo, geralmente óleo de linhaça, é muito irritante ao meu nariz e ao meu estômago. Lindíssimos os trabalhos a óleo, mas meu rumo, por enquanto, é a acrílica. O pontilhismo surgiu por acaso. Virou uma admiração constante. Sempre estou me inspirando nos mestres impressionistas Georges Seurat e Claude Monet e outros mais contemporâneos que também merecem todo o meu apreço.

A arte da aquarela, porém, ainda não chegou pra ficar na minha prática. Ainda não consegui o ponto exato da dosagem da água com a tinta no papel. Mas, é um desejo. Um dia vou executar com mais frequência. A única obra que considero apresentável é Cajazeira. Dei de presente a Mãinha. Está lá na parede, na Rua Souza Assis, 43, para quem quiser ver. 

Cleudimar, você está certo. Procuro combater a visão ocre por fatalidade do tempo. Meu amigo João Braz me ensinou muito e continua, do seu modo, ensinando. Com ele aprendi a enxergar a arte nas pequenas coisas. A Literatura e a História me presenteiam com esse olhar também, analisando obras e autores, repensando fatos e lugares. Mas a obra de arte pode transcender a tudo isso. É a força da criação. São meus filhos espalhados por aí.  






quarta-feira, 27 de março de 2019

O entrevistado








Ele veio e nem parecia tão preciso. Parecia meio tonto, abobalhado. Tinha um traço mitológico no apelido, que usava como grife. A aparência, na verdade, de vendedor. Vendia algo incerto, obtuso. Vendia, sei lá. Parecia que vendia panela, plano de saúde, confecção, imóvel. Panela pra ser utilizada no fundo do oceano. Plano de saúde pra animais invertebrados com antenas encolhidas e observadas apenas por um telescópio desenvolvido pela equipe de uma sociedade secreta. Confecção pra crianças nascidas apenas em anos ímpares, meses pares e dias de lua cheia. Imóvel do segmento embargado e visitado por dezenas de gerações localizadas em cidades montanhosas. Esse era o tipo de papo dele. Coisas improváveis ou dificílimas de acreditar. Mas, era pauta a cumprir.

Disse, ele próprio, que deveria usar óculos. Seria até menos confuso. Não usava perfume, ao que percebi, quando chegou mais perto, rompendo aquela barreira regimental das formalidades. Usava sempre uma camisa xadrez: azul, branca e amarela. Encardida. Fedia a peixe engordurado. Eu queria sair dali. Logo. Ficar invisível. Entrar numa cápsula do tempo. Mas, era pauta a cumprir.

Incrível como falava alto. A boca grande, os lábios quase imperceptíveis. Faltava desenho no rosto. Sorriso de cartaz, aquele forçado. Fazia um discurso cheio de chavões, frases compradas por ele mesmo, enlatadas pelos parentes, plastificadas na surdina, algemadas nos porões das ideias. Pedi água. Rezei silenciosamente pra sair dali. Mas, era pauta a cumprir.

De repente, um clichê. Mais na frente, lugares-comuns. Citações dele mesmo em obras nunca visitadas. Confundia os sobrenomes. Miguel de quê? Fernando de quem? Machado de onde? Nunca tinha lido a sério. Assim como o dia vem depois da noite. José de quê? Drummond de quem? Pedi pra ele repetir. Desconversei. Pedi perdão aos mestres. E começou a falar apressado, como se fugisse. Ora, mas era eu quem queria fugir. Olhou de lado. Não havia ninguém. Olhou de novo. Engasgou-se. Olhou de novo. Era um vulto, segundo ele. Garanto que eu queria falar com aquela suposta alma penada. Mas, era pauta a cumprir.  
          
Entre um tema e outro, gaguejava. Uma gagueira discreta, mas, em se tratando do semblante dele, era desconcertante, teatralizada. Parecia que comprava as frases num supermercado, em embalagens de papel. Noutras construções, mirava o teto, como se lesse ali numa cola. Buscava palavras, aposto com quem quiser, saídas de um pensamento falso. Geleia verbal. A boca começou a ficar parecida com um bico de coruja. Bebi mais água. Desliguei o gravador.





Parada das Miudezas

    A hipnose era certa. A Parada das Miudezas, no meu regimento, seria sempre uma visita obrigatória. Para uma criança de cinco anos de ida...