quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Quase vegana

 


        Passei apenas seis meses seguidos sem comer carne. Quando falo a respeito de carne, é claro, falo de fragmentos de bichos, principalmente dos conhecidos boi, frango, porco e peixe. Essa minha saga ocorreu com um propósito: facilitar algumas posturas de ioga. E funcionou. O corpo, ao ficar mais leve, desenvolveu os movimentos com mais rapidez ou mais eficiência. Mas, o tempo de dedicação foi curto. Perdi a batalha, por enquanto.

        Não fui mais adiante porque me rendi a um ensopado saboroso de rabada com agrião. Gente, não resisti mesmo àqueles pedaços de cartilagem, com aquele caldo cheirando a pimenta, cebola, alho, coentro ou salsa. Aquilo, colorido e brilhante, que uma vez serviu para compor o final de um esqueleto, de pronto me servia, em porções generosas. Parecia sussurrar assim: eu avisei.

        Sim, continuei com a prática da ioga, que não foi mais a mesma. Passei a intercalar dias sem carne, comendo ovo ou queijo. Palmito também, como nobre opção. Mas, num breve período, fui vencida. Logo se vê que não posso dizer que sou tão evoluída no campo espiritual. Há o pecado da gula que me cerca, dias e noites. Luto contra ele, como numa partida de boxe. Caso eu esteja de frente a um bife acebolado, é nocaute: com certeza.

        Dizem que há tipos de pessoas que não comem carne. Que comem somente peixe. Ora, pois. Somente peixe. Eu mesma já me empanturrei com moquecas, as mais variadas, com aquele pirão acompanhando as postas. Dependendo do bicho aquático, é carne sim, da boa, e com gordura, por baixo do couro. Percebi, depois de muitas investidas de boca cheia, que meu estômago não reage bem a esses encourados. Não significa dizer que eu esteja livre.  

        Outros seres da água, mesmo não muito convidativos ao meu paladar, também estão aptos ao meu octógono, à luta clássica dentro de mim. Não sei se me pegam no primeiro ataque. Aquela pergunta aparece, com ares literários: pensar ou não pensar; comer ou não comer; ser ou não ser. Mas ninguém faça cerimônia se quiser me apresentar uma panela com camarão, polvo, sururu, caranguejo ou siri. Devoro tudo, em rocambolescos minutos.

        Com a gula, há um médio controle, mas que soa como um sino que me atormenta. Quando eu me encontro com a costela bovina com batata, presto minha inteira solidariedade a quem a preparou. Tento ficar somente na batata, mas, realmente, não posso. Ainda me perco nas trilhas. Se possível, vou à cozinha do lugar e dou os parabéns aos responsáveis.

        Quando o assunto é ave, não somente frango, pato, galo e galinha me chamam a atenção. Lembro que, algumas vezes, comi arribaçã frita. Outros passarinhos, coitados, já caíram na minha teia. Admito que nem lembro de quem cometeu o crime da matança, e se o ato foi com baladeira ou arapuca. Quero nem saber.

        E quando o tema é suíno, olha, até tento me segurar, mas um churrasco de linguiça é de salivar. Aquelas bolinhas gordurentas me inspiram, mas parece que me vigiam, dizendo: Cristina, você não é mais criança. Vá devagar. Aliás, toda carne que enfrenta a brasa guarda uma riqueza diferente. O cheiro convida.

        Outra produção que nasceu dos porcos: a calabresa. Na pizza, é de arrepiar. Pode ser no pão. Pode ser no cuscuz. Pode ser no arroz. Pode ser com bolacha. Difícil é me segurar ou adotar a consciência de analisar os riscos sobre uma vida que foi tirada. Quando a mente vem se aproximando dessa ideia, de imediato, crio a expressão em letras gigantes, em neon: cadeia alimentar. Cadeia alimentar. Cadeia alimentar. Nem ouço mugido, berro, piado, grunhido, cacarejo. Penso na minha limitação em não obedecer aos ritos meditativos. Penso no presunto. Penso no paio. Penso na mortadela. Penso no salame.

      Outras lascas porquinhas são irresistíveis junto com o feijão. O que seria da feijoada sem essas criaturas, que meus amigos veganos chamam de cadáveres, não sei. Experimentei, entretanto, essa iguaria típica do nosso Brasil, de diversas maneiras: com proteína de soja, champinhom, grão-de-bico. Não colou. Se alguém me convidar, lógico, comerei. Mas o prazer vem mesmo é daquele carré, daquele pé ou daquele bucho. O toucinho é algo que enfeita o momento, coloca um ritmo guloso na dança. Às vezes, vem para estralar mesmo, fazer barulho na cabeça.

        Quando penso na família dos saltitantes caprinos, a gula triplica. Que bela festa. Cozido, assado, frito, costurado: bode, cabra, carneiro. Saia da frente, por favor. Nem cabrito escapa. Querido leitor, veja a minha dificuldade em ser vegana ou vegetariana. Peço desculpas pela decepção. Caso queiramos nos remeter aos miúdos, sem problema: fígado, coração, rim, moela. A brincadeira está valendo. A miudeza, o detalhe ou o pormenor sempre serão intensos objetos de estudo. Com louvor.   




Imagem: Vecteezy


terça-feira, 10 de novembro de 2020

Verdade verdadeira






 








        É, comadre, como eu ia dizendo, a verdade é verdadeira. Disse que ontem ouviram um vulto. E como se escuta vulto, não sei. Mas sei que se pode ver. Um compadre da vizinha disse que podia escutar, de tão estrondosa que era a clareza da luz. Pois, então. É isso mesmo. Disse que lá longe, por trás do sítio Esperança, indo mais para o lado do sítio Concórdia, eles avistam tudo o que é de vulto. E que tem toda semana. E é verdade verdadeira. Pois é.

        Não é querendo dizer que acredito em tudo, mas outra comadre minha, a senhora se lembra, aquela que foi para São Paulo, pois é, filha dos meus primos por parte de pai, disse que ela via. Disse que era. Sim. Disse que era. E era verdade limpinha, verdade verdadeira. Como o dia vem depois da noite, como aquele juazeiro não seca de jeito nenhum.

      Comadre, esse negócio de assombração é fato, o povo garante. Disse que é realidade, da boa. Verdade verdadeira. Não se assuste. Nem é para se assombrar. Nem era para ter esse sentido. Escute. Um conhecido meu, que trabalhava de entregador de leite, lá nas bandas do rio Verde, achou de se admirar com uma visagem. Não entendi. Ora, se ele viu, não sei por que se assustou. Disse que ele até desmaiou, comadre, de tão forte que era a visagem. Disse que era uma coisa enorme, que tomava mais de vinte metros de altura. Sufocava as vistas de tão brilhosa que era a situação. Daí que meu conhecido veio a ficar sem chão. Quem o socorreu, não sei. É possível que ele tenha se levantado sozinho porque naquele meio do mato não passa gente de hora em hora. É difícil. E era no amanhecer, no início, na boca do vento, com os primeiros raios de Sol, com os primeiros passarinhos cantarolando.

        Mas está aí ele para contar. Ele conta em tudo o que é estrada, boteco, pouso. Vai contando e destrinchando como foi. Eu mesma, comadre, não sei se acredito. Mas disse que é verdade verdadeira. Coisa da mais pura realidade. Coisa fina. Coisa que só quem vê é quem sabe contar direito. Quem não viu, assim como eu, fica fantasiando, desenhando na cabeça.

        Torço até para um dia me encontrar com uma imagem, uma cena desse tipo, uma inquietação próxima a que chegou na vista do meu conhecido. Pelo menos de cor parecida. Pelo menos para procurar, de mansinho, entender o que ele conta. Sim. Pois é isso.

        Aquele meu outro conhecido, parente daquele moço, Seu João, que vendia rifa, sim, aquele, jura de mão junta que, numa noite de inverno, viu. Disse que outro conhecido, que atende pelo apelido de Zinho, nunca mais foi a mesma pessoa. Como pode, podendo. Pode sim. Disse que ele viu e gritou de susto, comadre. Nem imagino como é esse susto porque penso que é uma luz que contenha certa beleza. Não vejo por que se espantar, como quem vê uma monstruosidade. Pois é. Disse que ele passou quinze dias sem dar uma palavra. Só fazia beber água, comadre. Pense numa novela.

        Mas, olha, aqui entre nós, eu acredito, de algum jeito. Sei que dizem que é verdade. Firme como uma rocha. Verdade, verdade, da mais profunda afirmação da história. E ele é um rapaz trabalhador. Não ia sair por aí mentindo, contando lorota com uma visagem. Fique sabendo, comadre, que eu, se me deparar com uma luminosidade que pode até tirar minha fala por alguns dias, não vou contar. Não conto a seu ninguém. Por quê? Ora, nem toda verdade verdadeira é assim, contada. Pode ser silenciada. Tem segredo que é a prova mais viva de uma coisa e que nem por isso é revelado. Guarda no seu íntimo, comadre, o caroço da verdade.

        E, como eu ia dizendo, esse assunto de visão fora do tempo, visão de repente, tem algum fundo de exagero. Sei lá se aquele meu conhecido viu coisa tão alta. Sei lá se foram tantos metros. Pode ser que ele mesmo tenha se enganado. Não estou dizendo, com isso, que o rapaz mentiu. Não. Quem sou eu. Mas o rapaz, no susto, pode ter aumentado a forma, pode ter caprichado na intensidade, pode ter carregado na ideia da ilusão. Pois é. Mas se eu disser isso a outra pessoa, diferente da senhora, comadre, que é da minha confiança, é sujeito eu ser interpretada com outro olhar.

      Disse que Donana, aquela minha conhecida lá do Pajeú, embarcou numa conversa assim, colocando algumas passadas na estrada do contador. Não deu certo. Foi moído para mais de ano. Inventaram que ela mentia e dizia, além disso, que o acontecimento nunca havia existido. Sinceramente. Isso mesmo. É melhor, acho, sentir a verdade com todo o seu universo. Sim. Porque é isso, comadre. A verdade, quando domina, é a verdade verdadeira.   


A montanha

 










        Uma das posturas mais ensinadas na ioga, para quem está começando, é a da montanha. Segundo a origem da prática, escrita em sânscrito, chama-se Tadasana. A pronúncia mais difundida é a tônica na antepenúltima sílaba, tomando como base nossa leitura aportuguesada: Tadássana. Para os mais ortodoxos, Yoga deve ser escrito assim, iniciando com ípsilon maiúsculo, com pronúncia fechada na segunda letra. E seria uma palavra masculina. Mas, as adaptações no nosso canteiro fazem da ioga um nome feminino, com pronúncia aberta. Não depende de letra maiúscula para se mostrar importante.

        A postura citada, que se coloca simples para quem inicia, trata apenas de ficar de pé. Apenas. Uma das versões é deixar os braços estendidos ao longo do corpo e olhar para a frente. Não é tão fácil passar alguns minutos sem se render à ansiedade ou aos barulhos internos e externos. Com o decorrer das atividades, percebemos que a respiração será a principal fonte da concentração, para que os pés se sintam firmes, a coluna esteja alinhada e o pensamento flua como um rio em tempo de primavera.

        Pensamento. Pensamento. Está aqui um discreto contrariador da ioga. Se não for bem articulado, torna a postura sofrida e o praticante irritadiço. Eu mesma já fui vítima do pensamento atravessado, desconsiderei o ritual e vi colegas desestabilizados com o tamanho do corpo. Na realidade, é o tamanho das próprias limitações, das desconfianças, das dúvidas, das intolerâncias, das bombas de açúcar no sangue, dos pratos deliciosos de costela ensopada. Tem gente que desiste logo na montanha.

       Ao imaginar a elevação, penso numa excursão diária, num grupo de desportistas, cujo líder recomenda cautela. Vamos escalar com cuidado, diria ele. Vamos, ao menos, contemplar. Ao menos sentir uma porção da natureza, disponibilizada para nós mesmos. Ao menos, sentir. Ao menos, pois a montanha traz uma série de simbologias. Se o corpo estiver ereto, firme, seguro no exercício, pensar significa não pensar. Sim. Significa não elaborar, não se preocupar com o que a mente apresenta e deixar o ato de respirar sintonizado com o ambiente.

          A montanha ganhou tal nome na ioga porque indica justamente o estado de firmeza, de equilíbrio, de exatidão. No nosso lado ocidental, pensamos parecido. Não é à toa que está incorporada, na nossa fala, a certeza de que a fé remove montanhas. Não é à toa que existe aquela música, que fala da montanha, que nos lembra o ato de agradecer. E o agradecimento é límpido quando compreendemos seu verdadeiro sentido. A montanha será sempre aquele lugar alto, representativo da beleza e da imponência. Nos meus desenhos de criança, a paisagem, para ser completa, tinha uma montanha. Um risco no fundo da composição, combinado com outros traços, com retoques de cores e algumas plantas. Para ficar ainda mais emocionante, percebi, no meu mundo, que da montanha poderia surgir uma cadeia, uma cordilheira, um conglomerado de montes, figuras naturais em pedras a serem escaladas.

        É por tudo isso que a postura da montanha é como se fosse a postura da verdade. A partir dela, percebemos como está nossa quietude, ou seja, nossa capacidade de parar, mesmo com tanto alarme tocando. Essa pausa é intencional e se torna complexa, à primeira vista. Quando lembro de montanha, também lembro de uma dificuldade que pode ser vencida. Lembro de uma suntuosidade geográfica. Um destaque. Um ser que é vivo, alto e bem alto. Com finalidades múltiplas. Finalidades que se auxiliam. Finalidades que nos convidam. Sim, vamos lá.  

  



Imagem: Freepik

terça-feira, 20 de outubro de 2020

Manda-Chuva e sua turma

 


 

        Minha ligação com William Hanna e Joseph Barbera não é pouca. Sou fã da dupla norte-americana, desde que comecei a entender que estou no mundo. Não me canso de aplaudir o talento dos desenhistas, que certamente não criaram seus personagens somente para as crianças. Estou falando de uma trajetória que começou nos anos de 1940 e tomou conta do imaginário de muitos, não somente da minha geração.  

        Ao estudar alguns autores de produtos literários para a meninada, encontro recados para os adultos. Algumas mensagens subliminares, aos poucos, fizeram e ainda fazem total sentido. É por isso que a obra de Hanna e Barbera tende a ser lembrada durante muito tempo. Na verdade, atravessa o tempo, pois crescer é estar diante desse painel de possibilidades, e as escolhas fazem parte do jogo. Não, não é decepcionante: é o clareamento da interpretação.

        Um exemplo do que estou falando é o inigualável Manda-Chuva, o original Top Cat. Que turma perfeita para discutir a realidade. Os gatos do beco são os malandros de sempre. O chefe deles é a representação de um cidadão que ainda percebemos nos dias atuais. É o mandante folgado, oportunista, que gosta de se dar bem em tudo. Para coroar suas vontades, conta com os parceiros, os aliados, os cúmplices. Agora, diga, caro leitor, se isso não é real. Não é difícil encontrarmos esses tipos num momento parecido com o que estamos vivendo, de campanha eleitoral. É lógico que, num desenho animado, é tudo alegria. Diversão garantida. As trilhas sonoras são um espetáculo, um rico elemento à parte. O acesso a uma cultura diferente também.

        Ao analisarmos de forma mais fria e objetiva os personagens, vemos que são muito próximos, muito reais, muito presentes. Hanna e Barbera traduziram, em muitas de suas obras, a essência do ser humano e do que este é capaz de fazer ou pensar. As maracutaias de Manda-Chuva, que é auxiliado por Espeto, Bacana, Chuchu, Gênio e Batatinha, podem conter o exagero típico dos cartoons, mas são bastante conhecidas.

        É a cara do gato gatuno fazer o possível para levar vantagem, junto com seus comparsas. O chefe, com certeza, leva ainda mais vantagem do que seus amigos, para que se estabeleça uma noção hierárquica mesmo. Quem manda é o mais astuto. Sem dúvida, o malandro é inteligente. O malandro sabe articular, elogiar, ordenar. Seus súditos, os discípulos devotos ou fidelíssimos seguidores, são hipnotizados todos os dias. Adoram obedecer. Com o rei gato em pleno exercício, os subordinados aprendem que o trabalho é algo cansativo e até desnecessário. O melhor, então, é fazer um plano para utilizar o que já está pronto. Vejamos se tudo isso não é bem familiar à nossa sociedade.  

        O Guarda Belo, que é a figura do oponente nas narrativas, é importante. Provoca nossa consciência sobre o que é certo e errado. Questiona, de forma direta ou indireta, se o que estamos vendo merece um final feliz para a malandragem. Em alguns casos, até Belo é envolvido pela teia antiética, ficando em dúvida se está punindo de forma correta. Não sei quando a crítica dos cartunistas perderá a validade. Não tenho ideia. Não sei. Nem vou arriscar. Quem souber, por favor, me avise. São tantas gangues, tantos becos e tantos gatos, que nem imagino. 








terça-feira, 7 de julho de 2020

Vau da Sarapalha









Teatro Íracles Pires lotado. Uma quarta-feira. O ano era 1993, minha tórrida atmosfera de preparo para o Vestibular. Colégio Objetivo. Ali mesmo, naquele casarão onde funcionava o Hotel Oriente. Um jovem rapaz, estudante de Direito na UFPB, em Sousa, e que trabalhava bem perto, no escritório de contabilidade de Seu João Meireles, chamou minha atenção. Melhor ainda saber que era neto de Dona Lourdes, do Hotel Cajazeiras, uma senhora a quem eu nutria de longe um certo carinho e admiração. O rapaz se chama Meilson Cunha. Foi um namoro rápido, poucos meses, mas suficientes para que mantivéssemos depois uma relação de amizade sincera. Lembro que ele disse que achava bonita a minha aproximação com a literatura. Falou que leria meus livros. Ótimo. Esse dia vem chegar. Sou grata a ele pelo presente de ter me levado àquela casa de espetáculos naquela noite.

Vau da Sarapalha, há anos em cartaz com o grupo paraibano Piolim, estava ali, na minha frente, descortinando um pedacinho do universo riquíssimo de João Guimarães Rosa. Mais tarde, demorei a dormir. Verdade. Fiquei horas lembrando de Escurinho, que com seu personagem fez gato e sapato da sonoplastia. Um show. Anos depois, comecei a entender essa monstruosidade de talento que é o percussionista e compositor. Grande Jonas.

No elenco também os irmãos cajazeirenses Soia Lira e Nanego Lira. Que personagens profundos. Sintonia pura. O chão se rasgava para meus olhos em camadas singelas de realidade. Junto com Everaldo Pontes, os diálogos escancaravam para o público as angústias da zona rural, carente de certezas e investimentos. Eis o talento do autor, ao contar um causo que parece simples, a construção de um vau na beira do rio e a luta psicológica de um personagem que se apaixona pela mulher do amigo. A malária como grande nebulizador da trama: febres, delírios, desilusões, ameaças, distanciamentos. A morte flertando o tempo todo.

Havia um elemento visual que me convidava a outros respiradouros lúdicos: o fogo. Podia ser interpretado de diversas maneiras: gerado na mata, esquentando a panela, ameaçando o grau de confiança dos dois amigos na narrativa. Quentura. Os bichos. Calafrio. Muitos contrastes que somente um diretor com o porte de Luiz Carlos Vasconcelos acertaria com sensibilidade. O sobrenatural foi algo bem planejado e executado. Um primor. A técnica em persuadir e envolver o leitor no teatro foi acertada, no alvo. Era um enorme texto que exibia seus contornos e se concretizava.

Daquele dia em diante, não li somente Sagarana, a obra que inspirou a peça, mas o que eu pude de Rosa. E ainda falta tudo o que dizem dele. Aí é infinito. Que bom. Continuemos a estudar esse médico e diplomata, mineiro do oco da natureza, que inaugurou um jeito diferente de escrever e transportou para o papel o jeito de falar, o jeito do habitante do interior do Brasil. Sempre há um quilate de mágico, de duvidoso ou temeroso. Nessa brecha, entram as nossas vontades de descobrir mais. Mais e mais.   









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sexta-feira, 8 de maio de 2020

Lições eternizadas






A sorte me chegou diversas vezes e sou grata por isso. Um dos exemplos que lembrei, dia desses, foi ter sido aluna de Wellington Pereira, na UFPB. A disciplina foi Preparação e Revisão de Originais, em 1994. Wellington estava quase embarcando para a França, com o objetivo de cursar o seu merecido doutorado em Sociologia. Um dos primeiros ensaios que escrevi para a disciplina, O sabor da crônica, além de documentado pela instituição, está por mim guardado. Foi ensaio porque se colocava diferente de todo e qualquer trabalho acadêmico que eu fazia: um tom dissertativo, mas sem tantas amarras. O professor nos ensinou a lidar com certa liberdade, aos construirmos uma crônica, um artigo de opinião, uma crítica, e até mesmo numa grande reportagem, que nunca deixa de apresentar o tom pessoal de quem escreve. Vejamos bem: certa liberdade, não total. Eis a fórmula ética do bom produtor de textos.

A característica metalinguística da disciplina dizia tudo sobre o professor. Na época, ele me presenteou com As possibilidades do Róseo, seu livro de contos. Poeta em tudo o que procurava dizer, ele foi fundamental para deixar clara a importância da técnica na escrita. Lembro da sua voz pastosa e risonha, dizendo sempre: talento sem técnica não adianta. Leia, dizia ele, para nós todos: leia e muito, muito mesmo. Esse muito, claro, com critérios estabelecidos pelo próprio leitor. Leia os clássicos, os escritores consagrados, os escritores premiados. Se o escritor foi premiado, por mais que o leitor não goste do estilo em questão, é importante ler e procurar compreender por que o prêmio. Caso o leitor não se conforme com apenas uma narrativa daquele autor, é salutar conhecer outros títulos.

Leia os best-sellers, pare de preconceito com os best-sellers, deixe o autor ganhar dinheiro em paz. A perenidade da obra, o tempo se encarrega de dizer e provar. Escreva. Escreva todos os dias: uma frase, um verso, uma estrofe, um parágrafo. Transforme a pressão cotidiana, os famosos prazos, em aliados: aproveite para aprimorar ou adaptar sua técnica. Por mais talentoso que você acha que seja ou que os outros dizem, invista na técnica. Seja o artesão que não se contenta, dia e noite, enquanto não admitir que seu texto está pronto para o editor. Leia a gramática, estude a gramática. Faça da gramática uma companheira de todas as horas, junto com o amigo dicionário.

E, assim, fui entendendo, aos poucos, os conselhos do bom mestre, com assento carimbado na literatura. Graças a essas aulas, decidi rápido o que seria meu Trabalho de Conclusão de Curso, em 1998: A tecla do tempo. Fiz um ensaio sobre a fusão do jornalismo e da literatura no gênero crônica. Não o considero maduro para ser publicado, mas pode crescer para outro ensaio, mais elaborado e recheado de novas ideias. O orientador do trabalho foi o professor Carmélio Reynaldo Ferreira, outro que me ensinou muito sobre o ato de escrever tecnicamente.

Durante a fase da pesquisa, tive a honra de entrevistar dois grandes cronistas que já se foram, para outra dimensão das palavras: Luiz Augusto Crispim e F. Pereira Nóbrega, o mesmo que tinha sido o Padre Chico Pereira, nas bandas do meu doce Vale do Piancó.  Cada um com sua lição prodigiosa em escrever. Todas as lições estão catalogadas no mesmo reino das subjetividades, o mesmo onde estão os sonhos, aqueles que, de vez em quando, relato aqui. A diferença é que beiram a realidade, quando encontram novas caras e letras. Mas isso já virou tema de outra conversa. Boa sorte.         









sexta-feira, 1 de maio de 2020

Trinta moedas de prata







Certas músicas aprontaram muitas na minha memória. Vivi nos acordes um realinhamento de ideias, uma carrumbamba de emoções com açúcar. Asa Branca está no tope dez das catarses. A primeira nota sinalizada na sanfona promove, de imediato, um olhar mais penetrante. O espetáculo está apenas começando, não somente para falar do fenômeno da seca. Fala da existência do ser humano, o qual, por ser humano mesmo, pergunta-se de forma diária e cansativa como ser gente. Nem todo humano é caracterizado por mim como gente. Tenho certeza de que muitos dos leitores entendem de outra forma: que todo ser humano é gente. Isso é saudável. Cabem as interpretações mais diversas.

A canção Asa Branca não cansa de ser interpretada. Isso acontece porque muitos seres humanos e gentes gostam de estudar. Há muito mesmo o que se estudar nela. Coincidência ou não, e não me incomodo se eu usar aqui lugares-comuns a rodo, a melodia começa com o acorde sol. Vamos considerar que o calor emanado pelo astro, se considerado o local árido em que visita, é ensurdecedor. Temos um rei que governa para todos. O acorde puxa uma colocação vocal brilhante de Luiz Gonzaga, casando a voz com o marejar do fole. Sem dúvida, é maravilhoso de se dançar.

A fala do sertanejo é lembrada na letra, com os cacoetes que constam na própria gramática da vida. É por isso que o verbo flexionado oiei não deveria ser olhei. Simples. Olhei, o verbo olhar no pretérito perfeito do modo indicativo, fugiria da narrativa, que também se assemelha a uma oração, um rito de passagem para um paraíso, dependendo da fé do caboclo. E, por falar em lugar onírico, ganhamos, de cara, a lembrança de São João Batista. Isso para o mundo todo ver que as fogueiras juninas são as histórias revividas, a cada milho assado, a cada rojão, a cada gafieira.

Asa Branca nasce em 1947, quando se usava pó de arroz como um dos elementos femininos mais cobiçados do pedaço. Vitalina tanto acreditou que insistiu no cosmético, como explicou Jackson do Pandeiro. E, por estamos perto do dia primeiro de maio, lembraremos ao som da mesma canção, que o Comando Geral dos Trabalhadores foi extinto na mesma época do pó de arroz. Trabalhador sindicalizado era uma ameaça constante, um ninho de subversivos. O militar Eurico Gaspar Dutra era o comandante do navio. 

Em seguida, temos uma construção do português clássico, utilizando o pronome relativo qual, em vez do pronome relativo que. E me perguntei, com meus olhinhos de criança, a olhar praquele céu azul e muito azul da plataforma celestial: por que uma palavra que não está no meu dicionário da escola e, logo adiante, outra em profunda sintonia com as leis gramaticais. O azul não respondeu como eu gostaria, deixando para depois. Mas continuei perguntando. É aquele azul para não esquecer. É aquele azul que nunca uma tela minha alcançará, e somente tentará se aproximar, como um gato se aproxima do dono.

A primeira estrofe fecha com a pergunta a Deus do céu, por sinal o mesmo céu nordestino que conhecemos. E, para quem ainda não conhece, imagine um tapete limpo, com uma nuvem ou outra passando pelos passarinhos. O verso termina com uma interjeição, que pode parecer um recurso estético para imitar o ritmo. Talvez tenha essa intenção também. Mas o ai é a primeira palavra que falamos ao sentirmos alguma dor. A lágrima é por dentro do corpo.

A terra arde e a música pergunta por que tamanha judiação. Judas, a origem do termo. Judas Iscariotes, um ser ainda pouco estudado e compreendido. Sem as trinta moedas de prata recebidas pelo tesoureiro, não sei se hoje seria dia trinta de abril de dois mil e vinte no meu calendário. Sem as trinta moedas, meus livros didáticos não estariam coalhados de romanos. Sem aquelas moedas, o cinema não teria lucrado. Sem aquele beijo, nada de coelho. Nada de chocolate. 









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terça-feira, 14 de abril de 2020

Sangue negro e cheiroso














     










Por entre uma página e outra, acertei meus ponteiros, num relógio mental descoberto pelas lavadeiras, fadas do cotidiano. Pelos cantos da brochura, embrenhei-me nas plantações de cana-de-açúcar, assisti a todas as possíveis lamentações do doidinho em seu mundo de perguntas, raspei incontáveis tachos, derramei meu sangue negro e cheiroso. Por entre uma e outra, senti a chibata, mas também assinei decretos e autorizei demolições; por entre uma e outra, as correntes doeram, mas apertei gatilhos. Por entre uma e outra, roí as unhas, mas vesti a echarpe.

Sem esperar, por certo, mas parte de mim poderia prever, senti cada batuque baiano, em outras plantações, as de cacau. Senti cada amargoso daqueles diálogos construídos por um amado, uma sentinela do seu povo, um alçador de desejos, um degustador de canela. Por entre uma página e outra, meu passaporte nem havia sido carimbado de forma oficial, mas comemorei os desafios românticos de uma moça de lábios de mel, infiltrando-me naqueles ipês floridos, devagar, ao passo que ousava conhecer as macabéas.

Nem era preciso pedir licença. Senti o maravilhamento daquilo, dada a minha natureza intrometida, de gente que necessita de fontes, fontes com pisadas sobrenaturais, fontes que mastigam o passado, fontes límpidas e sedosas, fontes barrosas de diálogos efervescentes, fontes a pensar a partir de anéis saturnianos ou aqueles da sociedade nórdica.

Por entre um suspiro e outro, meu senso mochileiro nem se tocou que tudo poderia mudar, tudo poderia renascer a cada linha completa ou livre, a cada rima ou a cada parágrafo, a cada tenda ou ramalhete. As pontas dos meus dedos dedilhavam uma febre de querer uma compreensão imediata, mas, por graça divina, cada degrau conduzia a um compartimento do cérebro, cada degrau me ensimesmava ou me expandia.

Que magia seria essa, tão nobre e avassaladora, não pude saber de imediato. Por entre um painel adocicado e outro, aparecia o navio de imigrantes, apareciam as geadas e apareciam os milhões de olhares e apareciam as bonecas de pano, os viscondes, os sacis, as cucas. Lembrei-me, ainda, que a viagem não é finita, que entre uma página e outra há uma pausa profunda e etérea, que entre um espaço e outro há uma passarela de realismos, de fantásticos, de lamentações e felicidades, de passaredos e passarinhos.

Como explicar ao outro o que senti quando entrei naquela vila, como explicar ao outro que me perdi naquela selva, como explicar ao outro o que vi quando naveguei naquele edifício no centro do oceano. Como explicar que, a cada virada de página, um som saía pelas costuras do papel; como explicar que, a cada cheiro de celulose processada, viria também o cheiro daquelas ruas cariocas, com Policarpo me escoltando.

Por entre uma lágrima e outra, até gargalhei e refiz meus redemoinhos, molhei a horta de ideias tontas, aprumei a coluna, mirei o alvo de possibilidades, sorvi o caminhar das mitológicas crateras: reli. Como explicar ao outro que a releitura é mais um cartão de embarque, como explicar ao outro que a imagem é texto etiquetado de conceitos e deflagrações, como explicar ao outro que a bula faz todo sentido místico, como explicar ao outro que a receita do brigadeiro carrega o dom da catequese histórica, como explicar ao outro que o penhasco surgiu naquele capítulo, como explicar ao outro que a montanha foi escalada inúmeras vezes somente naquele trecho, como explicar ao outro que sertões me ensinaram a ser forte, como explicar ao outro que os caetés e cariris marcham com seus maracás de forma perene.


Foi num bilhete sem data, invisível, que meu disco virtual começou a girar numa velocidade parecida com a dos dromedários, na areia quente, com um café coado para se acomodar e admirar o alpendre. Por entre os confetes de uma página e outra, ouvi um sussurro cifrado, pequenas vozes gregorianas. Por entre os ladrilhos de uma página e outra, os sermões me auxiliaram. Por entre os odores de uma página e outra, contei as moedas. As portas se abriram.      



  

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Exclamações e bolinhas ao vento






Um dos itens fundamentais para se dar bem numa redação de concurso é o cuidado com a pontuação. Isso nem é mais novidade. É apenas um lembrete. Não são poucos os textos em que me deparo com exclamações, uma chuva, uma ruma, um balaio. Se fosse somente o sinal conhecido, um traço na vertical com um ponto em cima da linha, até que eu conseguiria engolir. Mas, não. Há sinais inventados, aos montes.

É claro que a linguagem da internet é única, com regras próprias, que vão se modificando com intensa velocidade. Trata-se de uma área em plena ascensão, com estudos sérios e que não se deixam finalizar. Nesse poço de situações virtuais, a exclamação cresceu, migrou para um rumo exagerado. A utilidade do sinal, sabemos, serve para expressar um sentimento de espanto, alegria, surpresa, indignação. Podemos utilizar num aviso, num chamado, num pedido. Então, se estou alegre e quero demonstrar com uma ou tantas outras palavras, posso exclamar, sim. O sinal, somente um, revela o que quero no discurso. Pronto. Um. Basta um.

Vamos ao ambiente analógico. O autor do texto não se conforma, às vezes, e joga umas três exclamações. Outro tipo de autor, pode ser até o mesmo do primeiro exemplo, faz um desenho diferente: um triângulo isósceles com o vértice para baixo e uma bolinha em cima da linha do papel. Outro tipo de autor faz da trave um traçado sinuoso. Outro tipo de autor coloca um ponto ou uma bolinha abaixo da linha. Pois é. Na nossa língua, não me lembro desse sinal de pontuação no formato de uma bolinha, quase do tamanho de uma letra.

Quem já contou com redação por mim corrigida, percebeu meu olhar. Viu que não aliso. Circulo as exclamações desnecessárias ou repetidas. Preencho todas as bolinhas. Na cabeça de certo tipo de autor, bolinhas não são somente exclamáveis; também viajam nas letras i, jota e nos pontos finais, nas interrogações e nas reticências. O ponto-e-vírgula não escapa. Quando é aula em que se pode desenhar, aí vale qualquer forma geométrica e criativa possível. Tranquilo. Caso não esteja em foco essa ferramenta deliciosa da linguagem visual, vamos cumprir, portanto, o que manda o ritual do gênero pleiteado. Em se tratando de escrita para uma prova, teremos uma equipe treinada para apontar erros. A parte estética pesa para o candidato.

Certo dia, um texto enviado para vários blogs ou portais descrevia cenas exuberantes, personagens fortes. Não fosse pelo tanto de exclamação, eu teria me emocionado muito mais. Tudo bem, era uma crônica, algo mais descontraído. Mesmo assim, vi um milharal desidratado. Uma das cenas mais melancólicas. Acenei para comilanças que viriam a nascer, se o plantio estivesse saudável: pamonha, canjica, cuscuz, bolo, mingau. 

Numa das minhas primeiras aulas sobre dissertação, escrevo cinquenta dicas sobre o tema. Apenas palavras-chave. No decorrer de, pelo menos, três encontros, vou explicando: o que deve ser evitado; o que nem de longe deve ser elaborado; o que é importante fazer. Alguns falsos leitores ou preguiçosos de carteira reclamam na minha cara e consideram esse meu plano uma espécie de ensaio para o terrorismo. Respiro fundo, miro bem na pupila do sujeito e digo que são as regras e que eu não as inventei. E ainda falo assim: o bom aluno é aquele que copia o que o professor está falando, ou seja, escreve o que não necessariamente está escrito no quadro, no livro didático ou num arquivo compartilhado por e-mail.

Não sei se fui tão boa aluna assim, mas esse treinamento me aperfeiçoou na vida futura de repórter. Uma pena eu ter jogado no lixo tantos blocos e cadernetas; eles me diriam uma série de coisas, uma centena de cristinas.       








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quinta-feira, 2 de abril de 2020

Talvez os minutos surgissem


























Mesmo enfileirados, entendíamos o que se passava a trinta metros de distância. Entramos num meio de transporte. Não era ônibus, van, nave, nada que eu tivesse visto. Mas, de todos os meios, parecia um trem subterrâneo. Sentamos. Havia um ícone em cada poltrona, indicando nosso novo nome e nosso novo número. Nossas aparências mudavam gradativamente, a cada ponto de apoio. Embarcavam, nesses pontos, dezenas de outros seres, que já não eram mais pessoas, mas um misto de gente e luminosidade, bicho e centelha. Assim, de ponto em ponto, parecíamos nos confrontar com nosso mundo anterior. Paramos em pelo menos cem pontos. Não contei de verdade, pois adormeci. O sono era profundo e, ao mesmo tempo, real, pegajoso, intenso. Entramos noutro veículo, nos moldes parecidos com o trem de início. O mais recente, porém, trafegava de forma leve num terreno pantanoso. Por ali, víamos criaturas bem próximas do que nossa consciência avisava; em volta, todas caminhando naquele lodaçal característico, com aquelas plantas semiaquáticas, com aqueles anfíbios que se achavam os donos do pedaço. As criaturas pareciam satisfeitas. Apenas observávamos, em silêncio meditativo, pois éramos orientados a não sentir emoções perturbadoras da ordem. Um de nós, que havia entrado no ponto de apoio da planície, resolveu chorar. Foi, de maneira automática, eliminado. Desintegrou-se, em fiapos de luz. Continuamos firmes, sem dramas, sem perguntas, apenas observando cada trilha de acesso a um lugar ainda improvável. Num dos caminhos enlameados, paramos para obedecer a um sistema mínimo de trânsito. Por nós passou outro trem, multicor, barulhento. Era um barulho agradável, mas não posso classificar como música. Havia um ritmo, uma sequência lógica, uma harmonia que se guiava por alguns sinais do ambiente. Isso durou dois segundos. É o que eu imagino que seja, pois a noção de horas não existia ali. Um tempo indefinido. Algo a se pensar. Percebemos que existia uma fronteira a ser transposta. Alguns seres, que posavam como se fossem vigilantes, indicavam uma estrada de pedregulhos. Com esse comando, nosso trem saiu do pântano. Uma das criaturas, no entanto, resolveu seguir conosco. Aliás, resolveu cumprir uma determinação e grudar numa das portas. Não foi tão bizarro. Nossas mentes é que arquitetavam em progressão aritmética. Uma tela gigante apresentava nossos pensamentos, todos, de uma só ninhada. Trilhões de ideias, medos, estigmas, sombras e passaportes, vibrando num acorde desmedido, para que ninguém ousasse revelar o segredo. Um de nós tentou capturar outro pensamento. Foi enredado por uma névoa estranha, que imitava um fiscal de pátio. Nossa voz saía em canudos, por um cânion que aparecia a cada compartimento temporal. Talvez os minutos surgissem. Cada tubo ecoava noutro trem, que vinha tão lento, que adormecemos dentro do sonho. Tivemos certeza que era sonho e que não teríamos capacidade de sair dali sem que todos concordassem. Olhávamos uns para os outros de forma calorosa, animada, risonha. De forma esperançosa: recheada de chocolate. Não percebemos, porém, que todos estávamos noutro trem, mais festivo, mais convidativo. Pisamos no solo, velho conhecido. Éramos incapazes, por enquanto, de falar sobre o que sonhamos em conjunto. Mas sabíamos. No meio daquilo tudo, salvou-se um emaranhado de palavras e sentimentos. Saltitou. Brilhou. Bem na nossa frente, foi se erguendo. Tornou-se parte de tantos mundos. Combinou termos, sílabas, sons, apetrechos verbais. Combinou lembranças, personagens, sentidos. Nasceu o poema do dia. 




terça-feira, 17 de março de 2020

Tudo sobre o povo celta






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     Bom dia. Sabendo que meu público-leitor é sagaz, não preciso dizer que esse título é uma grande inverdade. Ainda estou analisando o vetor do problema, dentro do tema que trata sobre autores de livros com mania desse tudo. Tudo, tudo, tudo. Tudo sobre tal assunto. Tudo sobre tal pessoa. Tudo mesmo. Eles garantem e vendem, e muito.

     O que é, então, o tudo, pergunta o filósofo Parmênides a si mesmo, há mais de quinhentos anos antes de Cristo. Se Professor Raimundo estivesse diante de tal fato, perguntaria a Rolando Lero por que Parmênides se dedicou a discutir o abstrato. Rolando, com seu semblante risível de aluno preguiçoso e fraudulento, diria que o grego bebeu algumas doses a mais, durante uma festa com Zenão, numa taberna bastante disputada pela nata intelectual.  

    O abstrato é uma linguagem corriqueira, mas ainda acessível para poucos. Podemos considerar que sofre preconceito, por suas características não tão evidentes. Nossa mente muitas vezes processa o que está exposto com mais clareza, o que está mais burocraticamente revelado. O nosso cotidiano é o responsável por isso: a roda-viva nos instiga a querer o óbvio, a não enfrentar o que não está, de certa forma, perceptível. É assim que os títulos dos livros que citei como exemplo conquistam os que querem as respostas sem esforço, dispostas numa bandeja de prata. Se possível, em ordem alfabética.

   A linguagem abstrata nos oferece amplas possibilidades de análise. Quando produzo minhas colagens, gosto de pedir a alguém para avaliar, à primeira vista, o quadro. Depois, peço a mais alguém e mais alguéns. Não importa se fulano acerta ou cicrano erra ou beltrano se aproxima. Importa que cada um, com seu maquinário cognitivo, proporciona uma chance a si mesmo para entrar, com maestria, no túnel de significados. A leitura de uma obra de arte auxilia a descortinar nosso próprio olhar. É um exercício gostoso. Um treinamento diário.

    Então, diante disso tudo, fico imaginando o que dizer ao meu amigo Parmênides. Nas livrarias, físicas ou virtuais, estão lá os livros que dizem que falam tudo sobre determinado assunto. Não confundir, por favor, o que o cineasta Pedro Almodóvar fez em Tudo sobre minha mãe. Pedro não é bobo e fez o título de forma provocativa, forma que, aliás, paira sobre toda a sua produção.

    E esse tudo dos livros não está sozinho na fila do pão. Com ele, os que acham que contam a verdadeira história. A verdadeira história dos vikings, a verdadeira história de Cinderela, a verdadeira história de Dom Pedro II, a verdadeira história da Amazônia. Paremos um pouco para estudar, primeiro, a verdade. Sem dúvida, uma constelação se abre num céu de argumentos e certezas, conceitos e mistérios, fórmulas e tabelas.

    Procuro as estrelas. Enquanto isso, pego meu telescópio construído de açúcar e mergulho nas perguntas. No fundo do mar das inquietações, uma concha pede para ser aberta. A pérola está lá: um belíssimo ruído que invadiu um corpo estranho. Sua apresentação é mais do que concreta, mas o abstrato a tonifica, desde sempre. E ainda achamos tempo para dizer que o nada não existe.






sexta-feira, 6 de março de 2020

Com pimenta e tudo










Na crônica passada, cometi um erro duplo, de concordância nominal e de revisão. Eita. Ainda bem que existe uma alegria dupla também: leitores compreensivos e edição toda semana. No início do último parágrafo, escrevi: Mas confesso que minha torre de refrigerantes ruiu e, com ele, grande parte da minha ligação com a cor lilás. Correção: a torre de refrigerantes ruiu e, com ela. Ela: a torre. Eu poderia também concordar com eles, os refrigerantes. Mas, estou aqui remando.

Esse pronome masculino surgiu porque eu ia falar de mundo de refrigerantes. Quando mudei para a palavra torre, achando o termo mais apropriado, engoli a concordância com pimenta e tudo. Essa doeu. A torre desabou na minha estrada dos tijolos amarelos, cujo primeiro entroncamento desemboca na Terra do Nunca; de lá, há uma brecha para As Mil e Uma Noites – obra lida na sua língua original, em árabe. Meu sangue mouro ferveu. Deparei-me comigo mesma. Isso é segredo.  

Falando em livros, na crônica retrasada, ou seja, na crônica Lino e Leno, deixei transparecer minhas características de repórter. São características que se espalham em ramas. Não sei bem quando comecei na vida a fazer esse trabalho, mas pelo menos eu sinto que nunca vou deixar de ser. Talvez eu tenha iniciado quando tentei descobrir quais eram as versões reais das músicas tocadas no meu trenzinho. Eu nem sabia quem eu era, muito menos o que era música e o que era pesquisar. Talvez eu nem soubesse o que estava querendo. Sei que A Fonte do Itororó, canção folclórica e de domínio público, era um dos meus alvos de observação.  

Talvez eu tenha iniciado de verdade, e com consciência, quando editei um dos jornais da sala de aula, na sexta série. Tínhamos três edições. Éramos fortes. Aos onze anos de idade, nosso repertório intelectual já discernia o que era brincadeira ou piada daquilo que era concorrência acirrada ou campanha para presidente de alguma repartição imaginária. Entendíamos, sobretudo, que nosso ritmo era uma festa: foi com tal pensamento que solidificamos as nossas amizades.

Anos depois, tornei-me repórter de fato e de direito. Continuarei, seja em que vertente do conhecimento estiver. No atual dia a dia de professora, assisto a uma reportagem diária. É um assistir participante. Daquelas dezenas de olhares frenéticos, surgem personagens diversos, que se misturam aos contos, aos minicontos, aos ensaios, aos romances, aos poemas, pois se consagram como pontes para o alvorecer das ideias.

Percebo uma variedade de jogos, enlaces, entraves, comemorações, flertes, recomeços, viagens, acordos. Percebo o menino que está a fim da menina, a menina gótica, o tímido sofredor, o gago quase disfarçado, a religiosa combativa, o líder nato, o malandro agulha, o capitão-do-mato, o menino do interior, o garoto do shopping. Percebo quem não me percebe. Não há como fugir. Não quero que você, querido leitor, considere que estou com rompantes de vaidade. Lembre-se que nem tudo é confortável. Há situações em que eu rezaria para não perceber a poeira subindo, mas acontecem.

Olhares esperançosos, olhares aflitos, olhares perdidos, talentos reprimidos, dores enrustidas, vitórias tantas: um celeiro de histórias. Com isso, percebo a mim mesma. Percebo-me, com as minhas pessoas dentro da mesma. Dentro da mesma pessoa. Falo das muitas pessoas que somos, cada uma com seu balanço, dentro da pessoa principal. Exprimi, em algum rápido exemplo, um pedaço de uma das minhas pessoas, a repórter. Sim, pois dentro da pessoa repórter existem inúmeras outras pessoas e repórteres.

Há quem diga que o faro seja nato do repórter; há quem diga que existam técnicas para despertar essa argúcia. Mas, pelo que provavelmente disseram as minhas tetravós, noutros linguajares, para cada linha existe um ponto. Repórteres dependem de datas, testemunhos, lugares, imagens, pormenores. Um caminhão de pormenores. Eis a chave para toda a questão da alma de um repórter. É o pormenor que se torna grande, por ser um acontecimento ou um dado fundamental para o desenrolar de um caso. É o detalhe que faz a manchete, é o detalhe que derruba a muralha, é o detalhe que embeleza o bolo. É do detalhe que o povo quer saber. Bora.










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quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Regra número um





Na TV, um comercial com uma nova cor: lilás. Era a Fanta Uva sendo lançada. O que seria aquele líquido colorido e fermentado, não sei. Doce, é certo. Açúcar, uma bomba de glicose. Mas criança por acaso quer saber de coisa que faz mal, manual de instruções, bulas, estatutos regimentos: sim. Sim. No meu caso, sabia que existiam as normas.

Sei que, no dia do aniversário de Révia Mara na escola, tínhamos garantida a Cajuína, bebida universal nordestina. Já era por nós suspeitado. Eis que, naquela manhã de setembro, chega uma grade com os refrigerantes. No meio deles, adivinhe: a Fanta Uva, a moda, a onda do momento, a sensação da praça.

Sentamos em círculo: regra número um. A número zero era manter a elegância e a boa educação. Depois do recreio, festa. A sala era nossa. O birô ficava enfeitado de sabonetes, cartões, desenhos, chocolates e flores: eram nossos singelos presentes à aniversariante. Que beleza. Colocávamos nosso papo de meninas em dia: brincadeiras, papeis de carta, viagens imaginárias, Histórias em Quadrinhos, músicas, artistas famosos.

Ao meu lado, no círculo, sentou-se Luciana Batista, a garota mais cotada da escola para fazer o papel de Nossa Senhora nas apresentações religiosas. A fama se espalhou para outras escolas e dioceses. Bom comportamento, sorriso sincero, olhos esverdeados, pele alva e cabelos longos e lisos eram os atributos da nossa jovem santa.

Na festa, Tia Telma começou a servir os refrigerantes. Cada aluno com seu copinho, esperando uma bebida que refrescasse o calor e fosse favorável à nossa obediência. Se eu fechar os olhos, pareço voltar no tempo; visualizo toda a cena. A última gota da última garrafa de Fanta Uva daquela manhã festiva, portanto a última daquele dia de setembro, caiu no copo de Luciana. Pois é. Como destratar nossa colega iluminada. Como fazer cara feia diante da nossa colega famosa.  

O que eu podia fazer, nada. Nada. Nada mesmo. Mas, confesso que minha torre de refrigerantes ruiu e, com ele, grande parte da minha ligação com a cor lilás. Fiz um treinamento comigo para parar de pensar no corante doce. Acostumei-me com o sabor laranja. Ao longo de muitos anos, a cabeça foi se aprumando e ficando menos densa, o coração menos trevoso, os ouvidos menos moucos aos bons conselhos. Ao experimentar a bebida depois, senti que um terço da graça se perdeu. Faltou o clima geral da novidade, a quentura da mídia, a linguagem publicitária em sua plena forma, a hipnose. Isso: fui hipnotizada. Esse povo da mídia é assim.   










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sábado, 22 de fevereiro de 2020

Meu brinquedo platônico








Mercado Central: início dos anos de 1980. Eu procurava fazer tudo certinho, ser bem obediente e comportada nos lugares, sabendo que havia a possibilidade de ganhar um pão doce com garapa. Garapa, que eu digo, é caldo de cana. Claro. Pois é. Ir ao Mercado era um presente, uma premiação, algo que eu pudesse desfrutar, degustando cada compartimento daquele conjunto de informações para a minha cabecinha de criança. Parecia um parque de diversões. Luzes, cores, gente, música, conversa.

Chegávamos em Dona Lormina. Gente, o que era aquilo? Botões: centenas. Formatos diversos, texturas várias, finalidades combinadas. Um mundo. Cores, tantas, muitas, à distância. Isso mesmo. Eu observava a certa distância regulamentar, com mãos para trás. Olhos ligadíssimos. Acompanhava o funcionamento daquela complexa tecnologia de pregar botões com uma máquina, que parecia um brinquedo. Sim, era meu brinquedo platônico.

Pensando bem, o que eu faria em casa com tal engenhoca, não sei. Estou falando aqui de uma menina com seus seis anos de idade. Segundo a metragem da sujeita, pequena repórter, a máquina era gigante, objeto tão difícil de manipular quanto um trator. Quando eu chegava em casa, relatava minhas andanças para as minhas bonecas. Falava de uma banca de uma tal de Dona Losmina. Aí eu não entendia se era Losmina ou Lormina.

O Mercado guarda uns mistérios nos seus frequentadores. Não é possível que aquele teto fique silencioso ao tempo, sem ao menos esconder um segredo, uma treta, um enigma. Cada banca, uma parte do labirinto. Andando mais um pouco, lembro bem da família Mareco. Mais de um ponto comercial e sempre o mesmo sorriso e a forma anfitriã de tratar os visitantes. Às vezes, acontecia de me encontrar com Lucilândio, meu colega da Escola Nossa Senhora do Carmo. Lu é Mareco e Pereira.

Lembro com carinho de Auxiliadora Leite, Bia, na banca de Seu Geraldo. Bia me conhecia desde criança, andando no Mercado com minha mãe. Depois, Bia acompanhou minha morada no Alto Belo Horizonte, dos nove aos dezesseis. Sempre ao visitar meus familiares naquele bairro, era comum parar e tirar três dedos de prosa com Bia, Fátima, e outras tantas que me acompanham, como a família de Seu Casimiro. Edinaldo, Erivaldo, Neta, Neide, Neida e outro grupo pelas calçadas, a desejar boas-vindas aos velhos conhecidos. O povo do gesso, um vai e vem de trabalho, histórias e festas. Tem mais gente: deixemos para outra crônica. Bia agora está noutro mercado, com anjos celestes; lá não se negocia qualquer linha, fita, lã ou agulha; o local deve abrigar painéis flutuantes com milhares de cores, inclusive as que nem conhecemos.

Que alegria sorrir para as pessoas, no meu shopping center. Olha, como ela está grande. Hum, já teve piolho. Olha, ela sempre passa de ano na escola. Olha, ela gosta de estudar. Olha, ela vai ser anjinho de Nossa Senhora. Olha, parece com o povo das Melancias. Muito bem. Depois de andar à vontade, era hora de tomar garapa. Confesso que eu ficava esperando mais pelo pão doce do que pelo caldo. Mas eu traçava os dois, sem dó. A sobremesa era um picolé da Walmor ou um tubo de dropes.










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Parada das Miudezas

    A hipnose era certa. A Parada das Miudezas, no meu regimento, seria sempre uma visita obrigatória. Para uma criança de cinco anos de ida...