Certas
músicas aprontaram muitas na minha memória. Vivi nos acordes um realinhamento
de ideias, uma carrumbamba de emoções com açúcar. Asa Branca está no tope dez
das catarses. A primeira nota sinalizada na sanfona promove, de imediato, um olhar
mais penetrante. O espetáculo está apenas começando, não somente para falar do
fenômeno da seca. Fala da existência do ser humano, o qual, por ser humano
mesmo, pergunta-se de forma diária e cansativa como ser gente. Nem todo humano
é caracterizado por mim como gente. Tenho certeza de que muitos dos leitores
entendem de outra forma: que todo ser humano é gente. Isso é saudável. Cabem as
interpretações mais diversas.
A canção
Asa Branca não cansa de ser interpretada. Isso acontece porque muitos seres
humanos e gentes gostam de estudar. Há muito mesmo o que se estudar nela.
Coincidência ou não, e não me incomodo se eu usar aqui lugares-comuns a rodo, a
melodia começa com o acorde sol. Vamos considerar que o calor emanado pelo astro,
se considerado o local árido em que visita, é ensurdecedor. Temos um rei que
governa para todos. O acorde puxa uma colocação vocal brilhante de Luiz
Gonzaga, casando a voz com o marejar do fole. Sem dúvida, é maravilhoso de se
dançar.
A fala do
sertanejo é lembrada na letra, com os cacoetes que constam na própria gramática
da vida. É por isso que o verbo flexionado oiei não deveria ser olhei. Simples.
Olhei, o verbo olhar no pretérito perfeito do modo indicativo, fugiria da
narrativa, que também se assemelha a uma oração, um rito de passagem para um
paraíso, dependendo da fé do caboclo. E, por falar em lugar onírico, ganhamos,
de cara, a lembrança de São João Batista. Isso para o mundo todo ver que as fogueiras
juninas são as histórias revividas, a cada milho assado, a cada rojão, a cada
gafieira.
Asa Branca
nasce em 1947, quando se usava pó de arroz como um dos elementos femininos mais
cobiçados do pedaço. Vitalina tanto acreditou que insistiu no cosmético, como
explicou Jackson do Pandeiro. E, por estamos perto do dia primeiro de maio,
lembraremos ao som da mesma canção, que o Comando Geral dos Trabalhadores foi
extinto na mesma época do pó de arroz. Trabalhador sindicalizado era uma ameaça
constante, um ninho de subversivos. O militar Eurico Gaspar Dutra era o
comandante do navio.
Em
seguida, temos uma construção do português clássico, utilizando o pronome
relativo qual, em vez do pronome relativo que. E me perguntei,
com meus olhinhos de criança, a olhar praquele céu azul e muito azul da
plataforma celestial: por que uma palavra que não está no meu dicionário da
escola e, logo adiante, outra em profunda sintonia com as leis gramaticais. O
azul não respondeu como eu gostaria, deixando para depois. Mas continuei
perguntando. É aquele azul para não esquecer. É aquele azul que nunca uma tela
minha alcançará, e somente tentará se aproximar, como um gato se aproxima do
dono.
A primeira
estrofe fecha com a pergunta a Deus do céu, por sinal o mesmo céu nordestino
que conhecemos. E, para quem ainda não conhece, imagine um tapete limpo, com
uma nuvem ou outra passando pelos passarinhos. O verso termina com uma
interjeição, que pode parecer um recurso estético para imitar o ritmo. Talvez
tenha essa intenção também. Mas o ai é a primeira palavra que falamos ao
sentirmos alguma dor. A lágrima é por dentro do corpo.
A terra
arde e a música pergunta por que tamanha judiação. Judas, a origem do termo.
Judas Iscariotes, um ser ainda pouco estudado e compreendido. Sem as trinta
moedas de prata recebidas pelo tesoureiro, não sei se hoje seria dia trinta de
abril de dois mil e vinte no meu calendário. Sem as trinta moedas, meus livros
didáticos não estariam coalhados de romanos. Sem aquelas moedas, o cinema não
teria lucrado. Sem aquele beijo, nada de coelho. Nada de chocolate.
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