quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Café quentinho com tapioca










As tradições folclóricas são saborosas com o povo do sertão. As festas juninas e julinas são sempre melhores no interior, preferencialmente na zona rural. Um pavilhão de significados, girando, girando. Vamos abrir a porta, vamos entrar na casa do caboclo, do caipira, do jeca, do sertanejo, do matuto, do implacável defensor da terra. Mais água no feijão, que tem visita. De sobremesa, rapadura, alfenim ou goiabada cascão.

Sertão aqui não se trata de lugar seco, semiárido. É o lugar que se distancia do povaréu metropolitano do litoral. É olhar para dentro, no umbigo. É garimpar um planeta de infinitos anéis e mistérios. Causos, assombrações, visagens, pifes, reisados, bingos, anedotas, mezinhas, benzeduras, ladainhas, novenas, promessas. Trabalho. Trabalho. Trabalho. O céu se abrindo.

A literatura é um prato colorido de culturas, confirmando que ler é uma viagem saudável. E quem sabe disso tem o poder de apresentar o ritual a quem ainda não sabe. Arrumar as malas, então, consiste em abrir um livro e se concentrar para compreender o que o autor tem a nos oferecer. Cada autor com seu repertório. Cada autor com seu sertão, seu âmago, seu crediário. Cada autor com suas inquietações, seus fuxicos, suas dores, seus infinitos sonhos.

O cenário conflituoso de Canudos é muito bem descrito pelo nosso primeiro grande repórter, Euclides da Cunha, em Os Sertões. Guimarães Rosa nos abraça com as veredas e os desafios do seu Grande Sertão. Os pampas mais gostosos no Sul em Érico Veríssimo estão no interior. Monteiro Lobato nos encanta com um sítio inteiro de presente, coroado com um pica-pau amarelo, no interior do Vale do Paraíba paulista. A morte ou a vida severina de João Cabral não começa dentro das fábricas, mas em cada lajedo avermelhado. Jorge Amado é muito mais Itabuna e Ilhéus do que Salvador. Os personagens pintados por Graciliano descortinam o máximo os costumes e as peripécias do rincão das Alagoas.

Estou falando do Brasil, mas isso pode ser em qualquer sertão do mundo. Gabriel García Márquez é genial porque fala na cidade de Macondo, nas entranhas imaginárias da sua Colômbia. Os primeiros romances de Agatha Christie são ambientados em cidades inglesas do interior. Antes de dar a volta ao mundo em oitenta dias ou se aventurar nas vinte mil léguas submarinas, Júlio Verne aproveitou sua criancice no interior da França. São tantos os exemplos. Cada autor com sua artimanha, seu dengo, seu segredo. Cada sertão com sua aquarela. Cada interior com seu traço. 

Para falar do sertão, não é preciso tanto apelo tecnológico. Para falar do sertão, não é preciso aprovar regimento. Para falar do sertão, basta sentar na calçada. Basta falar do açude pedindo mais água, do broto do feijão, da tamarineira florescendo, do tacho torrando a farinha, do menino ou da menina soltando coruja ou pipa. Basta ouvir os acordes da banda marcial. Basta saber que a chuva merece um poema.

Para pensar no sertão, basta andar descalço. Basta ouvir o galo cantar. Basta observar o João-de-barro arquitetando a morada. Basta ser menos monóxido de carbono, menos hipermercado, menos arranha-céu. Basta ser mais renda de bilro, mais alpendre, mais flor de marmeleiro. Mais café quentinho com tapioca. Mais bila, traque de sala e boneca de pano. Mais carrinho de flandres. Mais sombra na latada. Mais forró de fio a pavio.




4 comentários:

  1. Adorei a crônica, leve, agradável leitura! Bjs

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  2. Para ser-tão é preciso tirar as vendas dos olhos, abandonar todo preconceito, desprender-se de tudo e entregar-se ao ser-tão com profundidade e paixão. Uma delícia de texto. Parabéns!!!
    Alexandre

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