Escola Nossa Senhora do Carmo. Na sexta série, aos
onze anos de idade, eu comecei a me soltar, a me envolver mais com música,
dança e teatro. Foi na escola que a timidez começou a ser vencida, com o
auxílio da nova morada, no Alto Belo Horizonte. No bairro, o convívio com uma
nova turma.
A cidade acabara de ganhar o sinal do SBT, com
algumas vinhetas ainda com a marca TVS. Um dos programas era a minha verdadeira
febre: Chaves. A criação do mexicano Roberto Bolaños foi decisiva para a minha
sociabilidade. Eu me divertia quando assistia aos episódios de toda a turma
criada por Bolaños e os personagens vividos por ele, além de Chaves, como
Chapolin Colorado e Doutor Chapatin. Munida desses elementos e com a cobertura
da escola, comecei a escrever uma peça numa caderneta.
O ano era 1988. Veio o Dia das Mães, uma data
comemorativa que ganhava ainda mais importância na escola. Nessa época, Dona
Hortência, mãe de Tia Carmelita, era sempre mencionada, com uma honra sutil e
religiosa.
Construí um texto, inspirada na turma do Chaves,
adaptando um pouco os diálogos para a nossa realidade cajazeirense, paraibana,
nordestina, brasileira, latino-americana. Eu achava que ia ser somente uma
apresentação teatral, nada mais. Não foi.
Começamos os ensaios. Tive que aprender a ser
paciente com meus colegas: os que faltavam, os que eram muito mais tímidos, os
que bagunçavam, os que tinham dificuldade em decorar o texto ou a marcação. Fui
diretora da peça, pois ninguém queria assumir a tarefa.
O figurino era coletivo. Cada um organizava o seu e
ainda auxiliava na indumentária dos outros. Todos sabiam que era uma atividade
que não valia nota, ponto ou qualquer outra bonificação nas aulas. O que valia
era nosso amor pela escola e nossa vontade de homenagear nossas mães.
Chegou, então, nossa vez de apresentar no pátio. No
roteiro das apresentações, o comando do microfone era sempre de Valéria Guedes,
que se sentia à vontade com o público, já que apresentava o programa Casa de
Brinquedos, na Difusora. Eu mesma era ouvinte assídua e me escalei para
participar numa das tardes.
Não pensei num título para a peça. Fomos anunciados
assim: “Agora, com vocês, a peça do Chaves!” Pensei em tantos detalhes, menos
no título. Éramos ainda muito crianças, cheios de fantasia. Eu, Tito,
Glayzianne, Regilânia, Érika, Andreicksa, Henry, Gerlúcio, Tárik, Fabiano e
Enilson. Révia e Sônia auxiliaram nos bastidores.
O sucesso foi tão grande que fomos convidados para
apresentar no Colégio Diocesano. Era uma gincana entre as turmas. Marcya Rejane
Trajano era a articuladora, como integrante da produção do evento. Nosso
camarim era o sótão do auditório. Três anos depois, eu era aluna daquele
colégio, mas terminantemente proibida de entrar no sótão para relembrar o acontecido.
Mais tarde, comecei a analisar a criação de Bolaños como
algo bastante presente em toda a cultura latina. A vila, onde se passam os
episódios, é o palco das diferenças sociais. Seu Madruga, o desempregado,
malandro, caloteiro. Chiquinha, carente de um olhar materno, propensa ao
atrapalho e à mentira. Dona Clotilde, a Bruxa do 71, desfrutando da terceira
idade e sempre à espera de um grande amor. Quico, o garoto esnobe, mimado, que
humilha os mais pobres. Chaves, o órfão, abandonado, marginalizado na escola e
em qualquer outro lugar. Seu Barriga, proprietário das casas da vila, mas
sofredor do preconceito por ser obeso. Professor Girafales e Dona Florinda, o
casal que poderia dar certo.
Fico pensando se tudo isso de Bolanõs é mesmo um
besteirol com dublagem tosca ou o nosso retrato de colonizados e historicamente
ainda buscando a identidade plena. Nossa latinidade é também nossa lembrança de
uma coleção de conflitos, um calhamaço de sorrisos, um punhado de gritos, um belo
caminhão de povos. Essa é a riqueza. A vila pode ser, na realidade, em qualquer
lugar do mundo.
E que alegria fazer teatro na escola! Por que não guardei minhas cadernetas? De vez em quando, eu me pergunto por que não conservei os rabiscos da peça e outros tantos rabiscos dessa fase. Seria o meu tesouro. Pode ser até que eu tenha rasgado de propósito. Ainda estou analisando. Ainda estou tentando descobrir, como diria Chaves, se foi sem querer, querendo.
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