Mistérios tantos, mistérios de
todas as formas. Conceição. Começa logo pelo nome, dedicado à Maria, mãe de
Jesus, Nossa Senhora da Conceição, consagrada em diversas religiões adeptas ao
Cristianismo, há mais de dois mil anos. A igreja matriz, imponente em sua
construção, procura dar conta dessa homenagem. Aos fundos da grande obra,
aparece um rio, que poucas vezes vi cheio, num curso de trabalho e harmonia. No
mesmo cenário, coqueiros finos, de estatura entortada, uns vinte metros de
estranha exuberância.
O calor da cidade sufoca. O vento
demora a descer pelas cordilheiras imperceptíveis do vale, o Vale do Piancó. Vivo
sempre a impressão geográfica de que as correntes ventosas, estonteantes, passam
bem longe, lá por cima, deixando o vale sozinho, entranhado de secura. À noite,
quando os grilos começam a sinfonia sertaneja, ao mesmo tempo o silêncio
assusta e o escuro das vielas espera o frio ameaçador para os desavisados. Frio
de deserto, que aparece com toda a sua força no despertar da madrugada. Assim é
Conceição, na memória dos meus sentidos.
O melhor, no entanto, acontecia
na rua Coronel José Peixoto de Alencar, Centro da cidade, na casa de Vovô e
Vozinha. Um mundo encantado. Eu e Christiano desfrutamos muito desse doce
império.
Vovô, Vicente Ramos de Lima,
proprietário de uma barbearia, que muito eu visitava, malinava nas coisas e
levava croque e carão. Carão bem explicadinho. Vozinha, Marina Oliveira de Lima,
proprietária da delícia dos picolés de saco, os dindins; da almofada de fazer
renda; de metros e metros de rendas, bordados, singelezas e crochês, além de
finas aplicações em tecidos; de uma receita de galinha de capoeira que nunca
foi copiada.
Titia Nina, a professora Ivanilda
Oliveira de Lima, crochezeira fina, proprietária de LPs que adornaram meu
imaginário e foram fundamentais para a minha vida cultural. Os preferidos:
Ivanildo, o Sax de Ouro (Coletânea); Trio Nordestino (Corte o Bolo); Clara
Nunes (Clara). Aqueles guarda-roupas com cheiro de talco sempre foram cuidados
por ela, minha única tia materna, que sempre me encheu de presentes, além de e
beliscões e sermões muito necessários. Ela ainda está lá, com meu Tio Evando,
os guardiões dos mistérios da casa. Guardiões das pegadas invisíveis de Vovô e
Vozinha, que há algum tempo moram no além da vida.
Cada trecho, cada parede, um
encanto: a vitrola, o rádio, o petisqueiro, a cadeira de balanço, o tacho de
ferro, a farmacinha, o pote com biscoito maisena, o garrafão de louça azul, o
garrafão de louça marrom, a mesinha de centro, os potes de barro. A despensa. Ainda
estão na minha cabeça: a gramínea, o galinheiro grande, o galinheiro pequeno, o
pé-de-romã, os pés de bom-dia e boa-noite, o coqueiro mais velho, o coqueiro
mais novo, o pé-de-pingo-de-ouro. Ainda estão: as lagartixas, os gatos da
vizinhança, as muriçocas, o feijão gordo e vermelho, o arroz sempre branco e
grudado, a farofa de cuscuz de milho com a gordura da galinha, o leite fervido
duas vezes seguidas, a coleção de Jorge Amado na estante, as malas de chão, o
oratório. O fogão a lenha desativado, mas intacto, como um totem.
O medo da pistolagem, os roletes
de cana. Os tecidos da loja de Seu Pitanga, o Beco da Pimenta, o Armarinho de
Ferreira. Macaúba, pitomba, goiaba, ciriguela. Os segredos. Milhões de
segredos. Fofoca, fuxico. A estrada de barro, a viagem de quase cinco horas. O
asfalto, a PB 400. A família Leite Braga. Os Caititus. Os Pires. As velhas
amizades. Os tios e tias, os parentes e aderentes, os compadres e comadres. Os
primos legítimos, segundos e terceiros. O pessoal da Mata Grande. Transparaíba:
Seu Zé Damacena. A veraneio de Neudinho. O forrobodó da esquina: sanfona,
zabumba, triângulo, pandeiro e reco-reco. Os velórios, as missas, as novenas e
ladainhas. O pastoril azul, o pastoril vermelho. Os mistérios. Conceição.
Mistura de bom-dia e boa-noite e quebra-pedra |
Tive o privilégio de viver um pouco disso em Conceição com seus mistérios.
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