Por entre uma
página e outra, acertei meus ponteiros, num relógio mental descoberto pelas
lavadeiras, fadas do cotidiano. Pelos cantos da brochura, embrenhei-me nas
plantações de cana-de-açúcar, assisti a todas as possíveis lamentações do
doidinho em seu mundo de perguntas, raspei incontáveis tachos, derramei meu
sangue negro e cheiroso. Por entre uma e outra, senti a chibata, mas também
assinei decretos e autorizei demolições; por entre uma e outra, as correntes doeram,
mas apertei gatilhos. Por entre uma e outra, roí as unhas, mas vesti a echarpe.
Sem esperar,
por certo, mas parte de mim poderia prever, senti cada batuque baiano, em
outras plantações, as de cacau. Senti cada amargoso daqueles diálogos
construídos por um amado, uma sentinela do seu povo, um alçador de desejos, um
degustador de canela. Por entre uma página e outra, meu passaporte nem havia
sido carimbado de forma oficial, mas comemorei os desafios românticos de uma
moça de lábios de mel, infiltrando-me naqueles ipês floridos, devagar, ao passo
que ousava conhecer as macabéas.
Nem era
preciso pedir licença. Senti o maravilhamento daquilo, dada a minha natureza
intrometida, de gente que necessita de fontes, fontes com pisadas
sobrenaturais, fontes que mastigam o passado, fontes límpidas e sedosas, fontes
barrosas de diálogos efervescentes, fontes a pensar a partir de anéis
saturnianos ou aqueles da sociedade nórdica.
Por entre um
suspiro e outro, meu senso mochileiro nem se tocou que tudo poderia mudar, tudo
poderia renascer a cada linha completa ou livre, a cada rima ou a cada
parágrafo, a cada tenda ou ramalhete. As pontas dos meus dedos dedilhavam uma
febre de querer uma compreensão imediata, mas, por graça divina, cada degrau
conduzia a um compartimento do cérebro, cada degrau me ensimesmava ou me
expandia.
Que magia
seria essa, tão nobre e avassaladora, não pude saber de imediato. Por entre um
painel adocicado e outro, aparecia o navio de imigrantes, apareciam as geadas e
apareciam os milhões de olhares e apareciam as bonecas de pano, os viscondes,
os sacis, as cucas. Lembrei-me, ainda, que a viagem não é finita, que entre uma
página e outra há uma pausa profunda e etérea, que entre um espaço e outro há
uma passarela de realismos, de fantásticos, de lamentações e felicidades, de
passaredos e passarinhos.
Como explicar ao
outro o que senti quando entrei naquela vila, como explicar ao outro que me
perdi naquela selva, como explicar ao outro o que vi quando naveguei naquele
edifício no centro do oceano. Como explicar que, a cada virada de página, um
som saía pelas costuras do papel; como explicar que, a cada cheiro de celulose
processada, viria também o cheiro daquelas ruas cariocas, com Policarpo me
escoltando.
Por entre uma
lágrima e outra, até gargalhei e refiz meus redemoinhos, molhei a horta de
ideias tontas, aprumei a coluna, mirei o alvo de possibilidades, sorvi o
caminhar das mitológicas crateras: reli. Como explicar ao outro que a releitura
é mais um cartão de embarque, como explicar ao outro que a imagem é texto etiquetado
de conceitos e deflagrações, como explicar ao outro que a bula faz todo sentido
místico, como explicar ao outro que a receita do brigadeiro carrega o dom da
catequese histórica, como explicar ao outro que o penhasco surgiu naquele
capítulo, como explicar ao outro que a montanha foi escalada inúmeras vezes
somente naquele trecho, como explicar ao outro que sertões me ensinaram a ser
forte, como explicar ao outro que os caetés e cariris marcham com seus maracás de
forma perene.
Foi num
bilhete sem data, invisível, que meu disco virtual começou a girar numa
velocidade parecida com a dos dromedários, na areia quente, com um café coado
para se acomodar e admirar o alpendre. Por entre os confetes de uma página e
outra, ouvi um sussurro cifrado, pequenas vozes gregorianas. Por entre os
ladrilhos de uma página e outra, os sermões me auxiliaram. Por entre os odores
de uma página e outra, contei as moedas. As portas se abriram.