Mesmo enfileirados, entendíamos o
que se passava a trinta metros de distância. Entramos num meio de transporte.
Não era ônibus, van, nave, nada que eu tivesse visto. Mas, de todos os meios,
parecia um trem subterrâneo. Sentamos. Havia um ícone em cada poltrona,
indicando nosso novo nome e nosso novo número. Nossas aparências mudavam
gradativamente, a cada ponto de apoio. Embarcavam, nesses pontos, dezenas de
outros seres, que já não eram mais pessoas, mas um misto de gente e
luminosidade, bicho e centelha. Assim, de ponto em ponto, parecíamos nos
confrontar com nosso mundo anterior. Paramos em pelo menos cem pontos. Não
contei de verdade, pois adormeci. O sono era profundo e, ao mesmo tempo, real,
pegajoso, intenso. Entramos noutro veículo, nos moldes parecidos com o trem de
início. O mais recente, porém, trafegava de forma leve num terreno pantanoso.
Por ali, víamos criaturas bem próximas do que nossa consciência avisava; em
volta, todas caminhando naquele lodaçal característico, com aquelas plantas
semiaquáticas, com aqueles anfíbios que se achavam os donos do pedaço. As
criaturas pareciam satisfeitas. Apenas observávamos, em silêncio meditativo,
pois éramos orientados a não sentir emoções perturbadoras da ordem. Um de nós,
que havia entrado no ponto de apoio da planície, resolveu chorar. Foi, de
maneira automática, eliminado. Desintegrou-se, em fiapos de luz. Continuamos
firmes, sem dramas, sem perguntas, apenas observando cada trilha de acesso a um
lugar ainda improvável. Num dos caminhos enlameados, paramos para obedecer a um
sistema mínimo de trânsito. Por nós passou outro trem, multicor, barulhento.
Era um barulho agradável, mas não posso classificar como música. Havia um
ritmo, uma sequência lógica, uma harmonia que se guiava por alguns sinais do
ambiente. Isso durou dois segundos. É o que eu imagino que seja, pois a noção
de horas não existia ali. Um tempo indefinido. Algo a se pensar. Percebemos que
existia uma fronteira a ser transposta. Alguns seres, que posavam como se
fossem vigilantes, indicavam uma estrada de pedregulhos. Com esse comando,
nosso trem saiu do pântano. Uma das criaturas, no entanto, resolveu seguir
conosco. Aliás, resolveu cumprir uma determinação e grudar numa das portas. Não
foi tão bizarro. Nossas mentes é que arquitetavam em progressão aritmética. Uma
tela gigante apresentava nossos pensamentos, todos, de uma só ninhada. Trilhões
de ideias, medos, estigmas, sombras e passaportes, vibrando num acorde
desmedido, para que ninguém ousasse revelar o segredo. Um de nós tentou
capturar outro pensamento. Foi enredado por uma névoa estranha, que imitava um
fiscal de pátio. Nossa voz saía em canudos, por um cânion que aparecia a cada
compartimento temporal. Talvez os minutos surgissem. Cada tubo ecoava noutro
trem, que vinha tão lento, que adormecemos dentro do sonho. Tivemos certeza que
era sonho e que não teríamos capacidade de sair dali sem que todos
concordassem. Olhávamos uns para os outros de forma calorosa, animada, risonha.
De forma esperançosa: recheada de chocolate. Não percebemos, porém, que todos
estávamos noutro trem, mais festivo, mais convidativo. Pisamos no solo, velho
conhecido. Éramos incapazes, por enquanto, de falar sobre o que sonhamos em
conjunto. Mas sabíamos. No meio daquilo tudo, salvou-se um emaranhado de
palavras e sentimentos. Saltitou. Brilhou. Bem na nossa frente, foi se
erguendo. Tornou-se parte de tantos mundos. Combinou termos, sílabas, sons,
apetrechos verbais. Combinou lembranças, personagens, sentidos. Nasceu o poema
do dia.
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