terça-feira, 17 de março de 2020

Tudo sobre o povo celta






www.freepik.com










     












     Bom dia. Sabendo que meu público-leitor é sagaz, não preciso dizer que esse título é uma grande inverdade. Ainda estou analisando o vetor do problema, dentro do tema que trata sobre autores de livros com mania desse tudo. Tudo, tudo, tudo. Tudo sobre tal assunto. Tudo sobre tal pessoa. Tudo mesmo. Eles garantem e vendem, e muito.

     O que é, então, o tudo, pergunta o filósofo Parmênides a si mesmo, há mais de quinhentos anos antes de Cristo. Se Professor Raimundo estivesse diante de tal fato, perguntaria a Rolando Lero por que Parmênides se dedicou a discutir o abstrato. Rolando, com seu semblante risível de aluno preguiçoso e fraudulento, diria que o grego bebeu algumas doses a mais, durante uma festa com Zenão, numa taberna bastante disputada pela nata intelectual.  

    O abstrato é uma linguagem corriqueira, mas ainda acessível para poucos. Podemos considerar que sofre preconceito, por suas características não tão evidentes. Nossa mente muitas vezes processa o que está exposto com mais clareza, o que está mais burocraticamente revelado. O nosso cotidiano é o responsável por isso: a roda-viva nos instiga a querer o óbvio, a não enfrentar o que não está, de certa forma, perceptível. É assim que os títulos dos livros que citei como exemplo conquistam os que querem as respostas sem esforço, dispostas numa bandeja de prata. Se possível, em ordem alfabética.

   A linguagem abstrata nos oferece amplas possibilidades de análise. Quando produzo minhas colagens, gosto de pedir a alguém para avaliar, à primeira vista, o quadro. Depois, peço a mais alguém e mais alguéns. Não importa se fulano acerta ou cicrano erra ou beltrano se aproxima. Importa que cada um, com seu maquinário cognitivo, proporciona uma chance a si mesmo para entrar, com maestria, no túnel de significados. A leitura de uma obra de arte auxilia a descortinar nosso próprio olhar. É um exercício gostoso. Um treinamento diário.

    Então, diante disso tudo, fico imaginando o que dizer ao meu amigo Parmênides. Nas livrarias, físicas ou virtuais, estão lá os livros que dizem que falam tudo sobre determinado assunto. Não confundir, por favor, o que o cineasta Pedro Almodóvar fez em Tudo sobre minha mãe. Pedro não é bobo e fez o título de forma provocativa, forma que, aliás, paira sobre toda a sua produção.

    E esse tudo dos livros não está sozinho na fila do pão. Com ele, os que acham que contam a verdadeira história. A verdadeira história dos vikings, a verdadeira história de Cinderela, a verdadeira história de Dom Pedro II, a verdadeira história da Amazônia. Paremos um pouco para estudar, primeiro, a verdade. Sem dúvida, uma constelação se abre num céu de argumentos e certezas, conceitos e mistérios, fórmulas e tabelas.

    Procuro as estrelas. Enquanto isso, pego meu telescópio construído de açúcar e mergulho nas perguntas. No fundo do mar das inquietações, uma concha pede para ser aberta. A pérola está lá: um belíssimo ruído que invadiu um corpo estranho. Sua apresentação é mais do que concreta, mas o abstrato a tonifica, desde sempre. E ainda achamos tempo para dizer que o nada não existe.






sexta-feira, 6 de março de 2020

Com pimenta e tudo










Na crônica passada, cometi um erro duplo, de concordância nominal e de revisão. Eita. Ainda bem que existe uma alegria dupla também: leitores compreensivos e edição toda semana. No início do último parágrafo, escrevi: Mas confesso que minha torre de refrigerantes ruiu e, com ele, grande parte da minha ligação com a cor lilás. Correção: a torre de refrigerantes ruiu e, com ela. Ela: a torre. Eu poderia também concordar com eles, os refrigerantes. Mas, estou aqui remando.

Esse pronome masculino surgiu porque eu ia falar de mundo de refrigerantes. Quando mudei para a palavra torre, achando o termo mais apropriado, engoli a concordância com pimenta e tudo. Essa doeu. A torre desabou na minha estrada dos tijolos amarelos, cujo primeiro entroncamento desemboca na Terra do Nunca; de lá, há uma brecha para As Mil e Uma Noites – obra lida na sua língua original, em árabe. Meu sangue mouro ferveu. Deparei-me comigo mesma. Isso é segredo.  

Falando em livros, na crônica retrasada, ou seja, na crônica Lino e Leno, deixei transparecer minhas características de repórter. São características que se espalham em ramas. Não sei bem quando comecei na vida a fazer esse trabalho, mas pelo menos eu sinto que nunca vou deixar de ser. Talvez eu tenha iniciado quando tentei descobrir quais eram as versões reais das músicas tocadas no meu trenzinho. Eu nem sabia quem eu era, muito menos o que era música e o que era pesquisar. Talvez eu nem soubesse o que estava querendo. Sei que A Fonte do Itororó, canção folclórica e de domínio público, era um dos meus alvos de observação.  

Talvez eu tenha iniciado de verdade, e com consciência, quando editei um dos jornais da sala de aula, na sexta série. Tínhamos três edições. Éramos fortes. Aos onze anos de idade, nosso repertório intelectual já discernia o que era brincadeira ou piada daquilo que era concorrência acirrada ou campanha para presidente de alguma repartição imaginária. Entendíamos, sobretudo, que nosso ritmo era uma festa: foi com tal pensamento que solidificamos as nossas amizades.

Anos depois, tornei-me repórter de fato e de direito. Continuarei, seja em que vertente do conhecimento estiver. No atual dia a dia de professora, assisto a uma reportagem diária. É um assistir participante. Daquelas dezenas de olhares frenéticos, surgem personagens diversos, que se misturam aos contos, aos minicontos, aos ensaios, aos romances, aos poemas, pois se consagram como pontes para o alvorecer das ideias.

Percebo uma variedade de jogos, enlaces, entraves, comemorações, flertes, recomeços, viagens, acordos. Percebo o menino que está a fim da menina, a menina gótica, o tímido sofredor, o gago quase disfarçado, a religiosa combativa, o líder nato, o malandro agulha, o capitão-do-mato, o menino do interior, o garoto do shopping. Percebo quem não me percebe. Não há como fugir. Não quero que você, querido leitor, considere que estou com rompantes de vaidade. Lembre-se que nem tudo é confortável. Há situações em que eu rezaria para não perceber a poeira subindo, mas acontecem.

Olhares esperançosos, olhares aflitos, olhares perdidos, talentos reprimidos, dores enrustidas, vitórias tantas: um celeiro de histórias. Com isso, percebo a mim mesma. Percebo-me, com as minhas pessoas dentro da mesma. Dentro da mesma pessoa. Falo das muitas pessoas que somos, cada uma com seu balanço, dentro da pessoa principal. Exprimi, em algum rápido exemplo, um pedaço de uma das minhas pessoas, a repórter. Sim, pois dentro da pessoa repórter existem inúmeras outras pessoas e repórteres.

Há quem diga que o faro seja nato do repórter; há quem diga que existam técnicas para despertar essa argúcia. Mas, pelo que provavelmente disseram as minhas tetravós, noutros linguajares, para cada linha existe um ponto. Repórteres dependem de datas, testemunhos, lugares, imagens, pormenores. Um caminhão de pormenores. Eis a chave para toda a questão da alma de um repórter. É o pormenor que se torna grande, por ser um acontecimento ou um dado fundamental para o desenrolar de um caso. É o detalhe que faz a manchete, é o detalhe que derruba a muralha, é o detalhe que embeleza o bolo. É do detalhe que o povo quer saber. Bora.










www.freepik.com





Parada das Miudezas

    A hipnose era certa. A Parada das Miudezas, no meu regimento, seria sempre uma visita obrigatória. Para uma criança de cinco anos de ida...