Na crônica passada, cometi um erro duplo, de concordância nominal e de
revisão. Eita. Ainda bem que existe uma alegria dupla também: leitores
compreensivos e edição toda semana. No início do último parágrafo, escrevi: Mas
confesso que minha torre de refrigerantes ruiu e, com ele, grande
parte da minha ligação com a cor lilás. Correção: a torre de refrigerantes
ruiu e, com ela. Ela: a torre. Eu poderia também concordar com eles, os
refrigerantes. Mas, estou aqui remando.
Esse pronome masculino surgiu
porque eu ia falar de mundo de refrigerantes. Quando mudei para a palavra torre,
achando o termo mais apropriado, engoli a concordância com pimenta e tudo. Essa
doeu. A torre desabou na minha estrada dos tijolos amarelos, cujo primeiro
entroncamento desemboca na Terra do Nunca; de lá, há uma brecha para As Mil e
Uma Noites – obra lida na sua língua original, em árabe. Meu sangue mouro
ferveu. Deparei-me comigo mesma. Isso é segredo.
Falando em livros, na crônica retrasada, ou seja, na crônica Lino
e Leno, deixei transparecer minhas características de repórter. São
características que se espalham em ramas. Não sei bem quando comecei na vida a fazer
esse trabalho, mas pelo menos eu sinto que nunca vou deixar de ser. Talvez eu
tenha iniciado quando tentei descobrir quais eram as versões reais das músicas
tocadas no meu trenzinho. Eu nem sabia quem eu era, muito menos o que era
música e o que era pesquisar. Talvez eu nem soubesse o que estava querendo. Sei
que A Fonte do Itororó, canção folclórica e de domínio público, era um
dos meus alvos de observação.
Talvez eu tenha iniciado de verdade, e com consciência, quando editei um
dos jornais da sala de aula, na sexta série. Tínhamos três edições. Éramos
fortes. Aos onze anos de idade, nosso repertório intelectual já discernia o que
era brincadeira ou piada daquilo que era concorrência acirrada ou campanha para
presidente de alguma repartição imaginária. Entendíamos, sobretudo, que nosso ritmo
era uma festa: foi com tal pensamento que solidificamos as nossas amizades.
Anos depois, tornei-me repórter de fato e de direito. Continuarei, seja
em que vertente do conhecimento estiver. No atual dia a dia de professora, assisto
a uma reportagem diária. É um assistir participante. Daquelas dezenas de
olhares frenéticos, surgem personagens diversos, que se misturam aos contos,
aos minicontos, aos ensaios, aos romances, aos poemas, pois se consagram como
pontes para o alvorecer das ideias.
Percebo uma variedade de jogos, enlaces, entraves, comemorações,
flertes, recomeços, viagens, acordos. Percebo o menino que está a fim da
menina, a menina gótica, o tímido sofredor, o gago quase disfarçado, a
religiosa combativa, o líder nato, o malandro agulha, o capitão-do-mato, o
menino do interior, o garoto do shopping. Percebo quem não me percebe. Não há
como fugir. Não quero que você, querido leitor, considere que estou com
rompantes de vaidade. Lembre-se que nem tudo é confortável. Há situações em que
eu rezaria para não perceber a poeira subindo, mas acontecem.
Olhares esperançosos, olhares aflitos, olhares perdidos, talentos
reprimidos, dores enrustidas, vitórias tantas: um celeiro de histórias. Com
isso, percebo a mim mesma. Percebo-me, com as minhas pessoas dentro da mesma.
Dentro da mesma pessoa. Falo das muitas pessoas que somos, cada uma com seu balanço,
dentro da pessoa principal. Exprimi, em algum rápido exemplo, um pedaço de uma
das minhas pessoas, a repórter. Sim, pois dentro da pessoa repórter existem
inúmeras outras pessoas e repórteres.
Há quem diga que o faro seja nato do repórter; há quem diga que existam
técnicas para despertar essa argúcia. Mas, pelo que provavelmente disseram as
minhas tetravós, noutros linguajares, para cada linha existe um ponto. Repórteres
dependem de datas, testemunhos, lugares, imagens, pormenores. Um caminhão de pormenores.
Eis a chave para toda a questão da alma de um repórter. É o pormenor que se
torna grande, por ser um acontecimento ou um dado fundamental para o desenrolar
de um caso. É o detalhe que faz a manchete, é o detalhe que derruba a muralha,
é o detalhe que embeleza o bolo. É do detalhe que o povo quer saber. Bora.
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Adorei seu conto, com pimenta e tudo.
ResponderExcluirO repórter é a alma da informação. Excelente texto, jornalista.
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