Pouca gente dá importância ao acento grave. É o que nomeia o
fenômeno da crase. Aquele mesmo: quando o verbo exige a preposição a e o
próximo elemento é uma palavra feminina, que exige o artigo a. Juntando os
dois, o compasso é craseado. Ocorre que, no texto anterior, errei a crase. Isso
mesmo. Construí indevidamente um prédio de tijolos de açúcar, num terreno de
algodão. A chuva alagou. Passei a semana pensando nessa minha façanha torta.
Para quem vive da palavra, é um erro que, se descoberto
depois, martela, martela, martela. Bate na consciência. Aquela batidinha de
valsa, que parece elegante somente aos ouvidos, mas chama para dançar. O erro
martelou. Não vou dizer que é imperdoável porque existem coisas piores. Mas não
foi bonito. O pingo d’água foi se multiplicando e abriu esta cratera de parágrafos
que você está lendo.
O acento é uma situação bem escorregadia: aquele pedido de
namoro do menino de quinze anos. Pense. O mundo tecnológico, em alguns casos,
não aceita e interpreta como lixo eletrônico. Quando corrijo redações e outros
textos, noto que sou mais condescendente com o esquecimento dos acentos em
algumas palavras. É um pecado menos tóxico. Sou mais rente com as concordâncias
verbo-nominais. Sonho em ser mais incisiva com certas opiniões, mas o jogo
democrático me obriga a respeitá-las. Se for caso de polícia, tem nada não: a
gente liga 190.
Acento, sinal gráfico, tracinho pra lá e pra cá. Não são
meros adornos. Merecem cuidado e atenção: guiar na pista molhada, achar o ponto
do brigadeiro. Alguns, entretanto, já desapareceram. O trema, por exemplo, é
uma marcação extinta na Língua Portuguesa, na reforma ortográfica mais recente.
Talvez volte na próxima, daqui a uns vinte anos. Fico pensando. Fico me
perguntando o que farão com o grave da crase. Fico me perguntando o que farão
com o circunflexo, o famoso chapeuzinho. Meu primeiro nome: Ivânia. Raríssimo
alguém me perguntar, quando pergunta meu nome completo, se tem acento. O hífen
é outro sinal, que não é acento, mas arma ciladas. Creio que desapareça.
Estou falando do nosso idioma e com todo o respeito do mundo
pelos sinais gráficos dos outros. O alfabeto árabe, por exemplo, é repleto de
apóstrofos. O grego parece um desenho, de tão volteado. O africano é uma
infinidade de códigos, pois é uma infinidade de povos. O guarani tem um charmoso
til no ípsilon. O eslavo apresenta um circunflexo para cima, ou seja, ao
contrário do nosso, que pode operar em consoantes. Os ideogramas chineses são
junções de imagens da natureza. Os exemplos são múltiplos. Há línguas que já se
foram, mas suas características aparecem entranhadas nos dialetos. E há
palavras perfeitamente inteligíveis sem qualquer vogal. É isso aí. É o mundo.
Imagem: Freepik
Muito bom o texto, Cris. Assim como o anterior, sobre sua vivência com a arte. Gosto muito dos seus textos. Bjs
ResponderExcluirGrata, Manu! Que bom poder contar com seu olhar de leitora. Bjs. :)
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