Aquele pedaço de folha desce na
correnteza, brilhando, numa velocidade olímpica. Espetáculo, emoção: vamos prestigiar,
temer, admirar, agradecer. Cinema, cinema mesmo, sem preço de ingresso ou
cadeira marcada ou qualquer negócio para suavizar a interpretação. Balde do
Açude Grande: exibição da sangria. Sangria para todos. Sem hora específica para
finalizar. Sem quantidade determinada de espectadores. Apenas para ver a água, imensa,
e toda a reverência a ela, e toda a capacidade de admitir sua grandeza e sua
beleza essencial à vida.
Cinema gratuito, em movimento.
Som associado ao barulho da rua, ao barulho das vozes e gritos e risos. Aquelas
caras de espanto e dúvida, sem saber por quantos dias, se o filme será uma
série, se o barulho tende a aumentar, se vai haver mais festa, se podemos falar
em sangrando mesmo, se sangrando pode ser o mesmo que vazando ou extrapolando.
Aquele pedacinho de pneu não
deveria estar ali, mas correu, foi flagrado, ultrapassou a vegetação,
embolou-se com uma pedra. Participou do filme como intruso, desmereceu os
atores de renome: sapos, jias, cururus, rãs, pererecas, cidadãos anfíbios. Aquela
sacola plástica entrou, também burlou as regras, aproveitando-se da própria
leveza. Estruturou, na surdina, seu criadouro de bactérias.
O público vira torcedor de um
filme único. A força da água puxa e repuxa, com seu marrom inimitável, um
chocolate barroso e mentolado com ramos de jiboia, a planta democrática, respira
na água, respira na terra. Sessão livre. Sessão livre. Criança pode tentar
entender tudo aquilo. Não há vigias, seguranças, zarabatanas, canhões, catapultas.
Não temos certeza se o processo será indicado a prêmios internacionais. O
roteiro é associado ao mistério: como medi-lo, não sei. Coisa pra curandeiros e
raizeiros.
O picolezeiro está ali. O
pipoqueiro está ali. O fã, o piadista, o bajulador, o gaiato, o cético. Todos. O
importante é que não funciona o ano inteiro nem todo ano. Ainda não sabemos se amargo
ou salgado, se competição ou atração, se xote ou miudinho, mas a plateia se
agita. Um se diz corajoso, quer ir, quer se jogar, fazer parte, chegar ao
canal, sentir o lodo, ser notícia.
Olha. Bem ali. Um tronco enorme,
descendo, disparado. Vamos arriscar. Seria um pedaço de jurema, sem a sua
espinheira defensora. Seria um pedaço de galho de castanhola, que se desprendeu
com a ventania, veio remando, remando, remando, lá do Serrote. Seria um grande
navio troiano, com colônias e colônias de fungos; num efeito supersônico,
voaria pela região mesmo, nas pequenas galáxias invisíveis, somente alcançadas
pela visão da fé. Seria um tronco de carnaúba, que atravessou os sertões todos
e boiou até se esfacelar na força da corrente, num efeito estelar.
Uns peixes se aventuram um tanto
aflitos, encapuzados, grogues, pinotando naquele tremendo parque de diversões. Os
pescadores estão prontos, levam varas e redes, anzóis e iscas, baldes e
desejos. Dívidas. Os bichinhos fogem, pegam carona nos tubos doces, surfam no
túnel de esgoto para se livrar dos predadores humanos. Outros se desintegram,
enxergando cores que só eles, no vão noturno, entre plânctons, pedregulhos e
civilizações. Aparecem em sonho. Voam ou alcançam a plenitude. Peixificam-se
para a História.
E, de madrugada, ressurgem
pequenos e minúsculos e microscópicos e incontestáveis insetos, bailando,
sambando, sendo eles mesmos. Vaga-lumes, muriçocas, besouros, mariposas: todos
a postos para a Corrida do Sereno. Mas, espere. Isso tem que ser contado noutra
hora.
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