quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Mimo








Naquela enorme e suculenta floresta, era possível caminhar com cuidado, em fila, no maior silêncio possível, sem ilusões. Um gafanhoto quis assustar o exército. Não conseguiu. Virou ímã.  





quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Café quentinho com tapioca










As tradições folclóricas são saborosas com o povo do sertão. As festas juninas e julinas são sempre melhores no interior, preferencialmente na zona rural. Um pavilhão de significados, girando, girando. Vamos abrir a porta, vamos entrar na casa do caboclo, do caipira, do jeca, do sertanejo, do matuto, do implacável defensor da terra. Mais água no feijão, que tem visita. De sobremesa, rapadura, alfenim ou goiabada cascão.

Sertão aqui não se trata de lugar seco, semiárido. É o lugar que se distancia do povaréu metropolitano do litoral. É olhar para dentro, no umbigo. É garimpar um planeta de infinitos anéis e mistérios. Causos, assombrações, visagens, pifes, reisados, bingos, anedotas, mezinhas, benzeduras, ladainhas, novenas, promessas. Trabalho. Trabalho. Trabalho. O céu se abrindo.

A literatura é um prato colorido de culturas, confirmando que ler é uma viagem saudável. E quem sabe disso tem o poder de apresentar o ritual a quem ainda não sabe. Arrumar as malas, então, consiste em abrir um livro e se concentrar para compreender o que o autor tem a nos oferecer. Cada autor com seu repertório. Cada autor com seu sertão, seu âmago, seu crediário. Cada autor com suas inquietações, seus fuxicos, suas dores, seus infinitos sonhos.

O cenário conflituoso de Canudos é muito bem descrito pelo nosso primeiro grande repórter, Euclides da Cunha, em Os Sertões. Guimarães Rosa nos abraça com as veredas e os desafios do seu Grande Sertão. Os pampas mais gostosos no Sul em Érico Veríssimo estão no interior. Monteiro Lobato nos encanta com um sítio inteiro de presente, coroado com um pica-pau amarelo, no interior do Vale do Paraíba paulista. A morte ou a vida severina de João Cabral não começa dentro das fábricas, mas em cada lajedo avermelhado. Jorge Amado é muito mais Itabuna e Ilhéus do que Salvador. Os personagens pintados por Graciliano descortinam o máximo os costumes e as peripécias do rincão das Alagoas.

Estou falando do Brasil, mas isso pode ser em qualquer sertão do mundo. Gabriel García Márquez é genial porque fala na cidade de Macondo, nas entranhas imaginárias da sua Colômbia. Os primeiros romances de Agatha Christie são ambientados em cidades inglesas do interior. Antes de dar a volta ao mundo em oitenta dias ou se aventurar nas vinte mil léguas submarinas, Júlio Verne aproveitou sua criancice no interior da França. São tantos os exemplos. Cada autor com sua artimanha, seu dengo, seu segredo. Cada sertão com sua aquarela. Cada interior com seu traço. 

Para falar do sertão, não é preciso tanto apelo tecnológico. Para falar do sertão, não é preciso aprovar regimento. Para falar do sertão, basta sentar na calçada. Basta falar do açude pedindo mais água, do broto do feijão, da tamarineira florescendo, do tacho torrando a farinha, do menino ou da menina soltando coruja ou pipa. Basta ouvir os acordes da banda marcial. Basta saber que a chuva merece um poema.

Para pensar no sertão, basta andar descalço. Basta ouvir o galo cantar. Basta observar o João-de-barro arquitetando a morada. Basta ser menos monóxido de carbono, menos hipermercado, menos arranha-céu. Basta ser mais renda de bilro, mais alpendre, mais flor de marmeleiro. Mais café quentinho com tapioca. Mais bila, traque de sala e boneca de pano. Mais carrinho de flandres. Mais sombra na latada. Mais forró de fio a pavio.




quinta-feira, 11 de agosto de 2016

A gramática da limpeza
















Estive pensando, pensando. Tomei algumas decisões que pareciam urgentes. Vou fazer uma limpeza gramatical de pensamentos. As figuras de linguagem me auxiliarão nessa viagem. Economizarei alguma coisa, eliminarei esforços, vou tangendo os burros da estrada. É eliminação e, ao mesmo tempo, perfume. Trata-se de uma daquelas faxinas que aproveitam alguma quinquilharia guardada, com cheiro de mofo, e que, se sacudida, expele algumas lembranças. No meu caso, ao tomar coragem para a tarefa, as bactérias já se inscreveram para participar.

Fui pensando e decidi que era uma daquelas limpezas que dependem de alguns dias, em momentos diferenciados. Algumas podem ocorrer até em sonho, em camadas. Vou me atirar na gramática do asseio, pois a gaveta da memória guarda figuras desnecessárias. Se possível, capturo um pleonasmo daquele pensamento trancafiado, que há muito não batia à porta. Ao mesmo tempo, vou hidratar umas prosopopeias, com seres que precisam de voz e vez, aspas, travessões, significados, expressividade. Não vejo problema em leitões falantes, como Marquês de Rabicó. Preste atenção no seu gato, na sua árvore, na sua ametista: todos falam. Tudo isso é provável, em se tratando da aldeia dos pensamentos. E se a preguiça bater? Silepse. Uma chinelada nas frases imaginadas. Silepse de gênero, número e pessoa: olimpíadas transmitidas pelos neurônios.

Posso até hibernar nas convicções, sem metáforas. Sim, porque algumas merecem ainda meu estacionamento inteiramente gratuito. Algumas têm cara de eternizadas. Ao cansar de ironias, vou ser mais simples, com postura de comparação. Farei uma limpeza pública, em certos casos. Quero ser mais clara e ágil no pensar, menos paranoica, menos entrevada de elipses, também menos recheada de paradoxos. Bem menos paradoxos. As figuras aqui estão libertas dos dicionaristas. Elas simplesmente entraram no texto com vassoura, pano, rodo, aspirador. Tudo bem.

Não reclame comigo, pois vou me jogar nas metonímias, nos polissíndetos, numa música sem fim, num concerto que será regido num florestal de culturas. Repetições para os pensamentos bons. Por que me limpar deles? Muitas repetições. Uma mistura de livros. Umas sequências bem permissivas com a palavra, que é gente. Gandaias de símbolos. Por que não um poema no prato? Para as hipérboles, para as catacreses, para os sucos de graviola, vou dar uma chance. Se for tudo muito árduo, paro. Respiro.  

Em dia marcado e bem intencionado, vou realizar um banquete para as antíteses. Quero saber se elas mesmas serão capazes de se olhar, de encarar essa brincadeira com seriedade. Quero saber se elas vão disputar mesmo no ringue. Em seguida, proponho uma dança com os eufemismos, todos os eufemismos, uma ciranda de eufemismos, para que não nos cansemos tanto, para que a realidade não esculache com as singelas festinhas de aniversário. Os eufemismos serão sempre um bálsamo depois da limpeza pesada.


Vou fazer aquela faxina mesmo. Meus desejos em aliteração saltitam. Minhas ideias em gradação: certo, tranquilo, concordo. Antes, porém, pausas. Pausas. Pausas. Darei uma larga chance à anáfora. Agora. Vamos limpar, vamos pensar, vamos organizar. Darei uma larga chance ao glúten. Darei uma larga chance àqueles prazos para começar a malhar. Darei uma larga chance aos derivados de suínos. Darei uma larga chance ao sertanejo universitário. E, após essas vacilações conscientes, já estarei em paz com a minha hora da faxina, com caneta, papel e desinfetante de eucalipto. Quilos e mais quilos de lições. Outras figuras de linguagem ficarão à espreita, querendo entrar aqui. Aguardem. Transformem-se. 




Parada das Miudezas

    A hipnose era certa. A Parada das Miudezas, no meu regimento, seria sempre uma visita obrigatória. Para uma criança de cinco anos de ida...