Fragmentos de cores, cores
diversas, açúcares, azedumes, todas as cores. Não tão ácidas, mas como a cor da
laranja que rendeu um suco. Um suco na casa de Dona Tonha, com direito a foto,
com direito a ver e sentir aquela outra cor, a do céu, imediatamente cinza. O
imediato se deu com outra cor, uma silenciosa por entre as leis de uma cor, a
transparente. A água, a chuva. Sente aqui no terraço, disse ela, sente aqui
para esperar a chuva passar. Tome um cafezinho. Ela achou pouco e me mostrou a
cor de uma cadeira enferrujada. Também a cor de uma blusa manchada por suco de
caju. Também a qualidade da cor dos tomates plantados por ela própria. Achou
pouco e me mostrou toda a horta.
Nas proximidades da casa,
uma cor estranha, a do burro. Encostada numa ripa, a carroça, embaixo daquele
céu cinza e de uma chuva que não dava trégua. Está trabalhando, perguntou. Um
carro ia passando. Dona Tonha achou pouco e quis saber a origem do meu
sobrenome. De quem, perguntou. Um cheiro de panela queimando, problema
resolvido, desligue o fogo. Dona Tonha achou pouco e me ensinou a receita do
doce de banana que estava no fogão.
Ouvi aquele clássico
escorrer d’água. O burro, amarrado num poste de madeira, umas latas de tinta
por perto. Toda a agilidade de um formigueiro me entendia. Dona Tonha achou
pouco e assanhou as formigas. Veneno. Chega de pestes, chega de pragas, foi
espalhando o remédio. Operação de guerra no formigueiro: o comandante do
exército determina desocupação da área. Urgente. Dona Tonha achou pouco e quis
saber do meu cabelo. Ensinou-me um chá. Esse é batata, esse não engana, o
cabelo não cai mais.
Não sei se eu bebia o café
de uma vez só ou se apreciava a cena chuvosa. A cidade sem chuva há um mês. O
burro relinchava, paciente. E eu esperava o céu abrir, mudar de tom, migrar de
cor. Meu relinchar se fazia quieto. Dona Tonha achou pouco e quis perguntar
sobre meu silêncio, meu esperar.
Minha irmã trabalha no
posto de saúde, faz limpeza, gosta de lá, não bebe café, mora do outro lado do
outro quarteirão, fez uma cirurgia de catarata, é ainda jovem mas sofre das
vistas, já foi mordida por uma coral, antes de dormir reza o rosário. Dona
Tonha descreveu, descreveu. Achou pouco, repetiu. Ainda achando pouco e bem
menos, contou sobre o irmão e repetiu.
A garrafa inteira havia
acabado. Outro café, outra garrafa, outras cores. Lá vieram os tarecos. Um bolo
de macaxeira. A chuva avançando, um trovão sendo temido. Era uma pequena
tempestade com a função mística de sacudir a terra, os telhados, os cabelos, as
galinhas. Passar um frio. Passar oitenta anos. Dona Tonha parecia velha, se
achava também. Mostrou o bordado que ganhou da afilhada. O burro com olhar de
aviso. Antônia dos Anjos, Tonha, explicou duas vezes seguidas. Tentou explicar
sua aptidão para a música, coisa de nascença.
A cor do tareco
impressionou mesmo. Duas vezes seguidas é um sinal, disse, ao falar do
relincho. Mais café. E sentamos no alpendre. Queria se certificar do céu
ficando azul claro de novo. Azul de lindo. Dona Tonha achou pouco e me levou
até a porta.
Texto publicado no jornal A União (João Pessoa-PB/2006)
Linda crônica, uma poesias da vida.
ResponderExcluirQuantas cores, quanta conversa, quanta chuva, quanto café, quanto burro, e Dona Tonha ainda achou pouco. Quanto amor... quanta vida...
ResponderExcluirMe lembra o interior das minhas Minas Gerais, cercado de montanhas e donas Tonhas...
ResponderExcluirAdorei! Senti até o cheiro de café torrado e de terra molhada... :)
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